LEONARDO MARMO MOREIRA |
Continuação da
PARTE III....
Capítulo 24 – A regência e o segundo reinado
Como já havíamos adiantado no final do capítulo
23, o início do capítulo 24 apresenta um problema de ordem cronológica. Afinal,
havíamos terminado o capítulo 23 com Bezerra de Menezes sendo convocado para
assumir seu apostolado à frente do Movimento Espírita no final do século XIX e
temos agora um recuo a data “7 de abril de 1831”, quando Dom Pedro I “abandonou
o país”.
O capítulo 24 contempla uma exaltação do
período da regência, que consiste em discussão questionável do ponto de vista
histórico e espiritual, com argumentos inexistentes ou insuficientes do ponto
de vista doutrinário. Vejamos:
p.170 “A
Regência ficava assinalada no tempo, como uma das mais belas escolas de honradez
e de energia do povo brasileiro. Vivendo numa atmosfera de franca antipatia
popular, pelas medidas de repressão que lhe cumpria executar; flutuando,
como instrumento de conciliação, entre as marés bravias do separatismo no Sul,
os vagalhões impetuosos da opinião partidária nas cidades centrais e as ondas
tumultuárias das lutas ao Norte, todos aqueles homens que passaram pela
Regência foram compelidos aos mais elevados atos de renúncia pelo bem
coletivo, praticando com isso verdadeiro heroísmo, a fim de que se conservasse
intacto, para as gerações do futuro, o patrimônio territorial e a escola das
instituições, na objetivação luminosa da civilização do Evangelho, sob a luz
cariciosa do Cruzeiro”.
Ou há um exagerada exaltação de qualidades ou
uma exaltação de fraquezas. Nesse caso, todos os representantes da regência, sem exceção, tiveram uma atuação
extraordinária, do ponto de vista espiritual, sem nenhuma ressalva digna de
nota. Interessante analisar o comentário: “Vivendo numa atmosfera de franca antipatia
popular, pelas medidas de repressão que lhe cumpria executar...”. Será
que a antipatia popular não tinha nem uma mínima razão de ser? Mesmo tomando
“medidas de repressão” estavam sempre certos, espiritualmente?! E o texto para defender possíveis problemas
morais de decisões da regência justifica “...que lhe cumpria executar”.
Jesus
ensinou-nos: “São necessários os escândalos, mas ai por quem os escândalos
venham”. Portanto, “a cada um é dado segundo suas obras”, o que equivale a
dizer que respondemos pelas medidas que tomamos individualmente. Tamanha
exaltação à regência, sem maior explicação doutrinária, soa como se o texto
“tomasse partido” em uma disputa de forma dogmática, isto é, sem maior análise
e conhecimento de causa. A questão que surge é doutrinária: quais foram as
medidas e por que “cumpria executá-las”?
O texto não responde a esse questionamento. Assim, fica difícil retirar
aprendizado doutrinário do texto, pois é postulado algo que não é minimamente
explicado.
Com a inesperada abdicação de D. Pedro I, seu
filho Pedro (1825-1891), sucessor legítimo, não pôde assumir, pois contava com
apenas cinco anos. No aguardo da maioridade do sucessor, o Brasil, de 1831 a
1840 foi governado por várias regências, provocando instabilidade política e social,
o que desencadeou revoltas regionais cumulativas e anos difíceis para a
população “pobre e miserável” no dizer de historiadores. Storto e Aguilar Filho
(2015) caracterizam o período regencial como um dos mais conturbados da
história de nosso país. Devido à falência do Banco do Brasil em 1829, o estado
estava falido. Além disso, o governo representava os interesses das elites do
Rio de Janeiro, grupo que se opunha aos interesses das elites de outras regiões
do país, que defendiam maior autonomia política para as províncias. Some-se a isso a ida de toda a corte
portuguesa de volta para Portugal. É nesse período que estouram a Sabinada, a
Revolução Farroupilha, e a Cabanagem, movimentos que foram violentamente reprimidos
pelo governo regencial. Para citarmos apenas um exemplo, a regência una do
padre Diogo Antônio Feijó (1835 a 1837) ficou marcada pela defesa da ordem e da
manutenção da aristocracia no poder. Incapaz de conter as várias revoltas em
curso, renunciou. Ademais, o grupo dos chamados “liberais” aplicou o “Golpe da
Maioridade” (1840), levando Dom Pedro II ao poder com apenas quatorze anos de
idade. Mais uma pergunta: aplicar um golpe político, mesmo com objetivos
sinceros, mas desrespeitando leis civis, é ato elogiável?
Capítulo 25 – A Guerra do Paraguai
Antes de retomarmos a discussão do conteúdo
propriamente dito, é importante deixar claro que nesse capítulo 25 (“A Guerra
do Paraguai”) são citados textualmente os anos 1850 e 1843 (página 174); os
anos 1849 e 1852 (página 175); e 1865 (página 177), os quais são muito
anteriores a várias discussões do capítulo 23 (“A obra de Ismael”). Portanto,
fica claro que o capítulo 23 está totalmente fora de contexto histórico e de
sequência cronológica.
As
duas primeiras páginas do capítulo 25 (“A Guerra do Paraguai”), páginas 173 e
174, são praticamente dedicadas de forma exclusiva à exaltação dos predicados
de Dom Pedro II, seguindo uma tendência de todo o livro de fazer uma avaliação
superficial de fatos, personagens e momentos históricos. O texto força a
interpretação patriótica e distorce situações históricas para exaltar o Brasil
e sua história, mesmo quando os eventos não são tão positivos assim. Vejamos um
exemplo no final da página 174 (final do segundo parágrafo do capítulo):
p. 174 “Numerosas
conquistas, nesse particular, se consolidaram sob administração do Imperador generoso e liberalíssimo. Em
1850 iniciava-se a plena supressão do tráfico negro, realizando-se a Abolição,
por etapas altamente significativas”.
Considerando
a expressão “Imperador generoso e liberalíssimo”, e identificando que esse
registro vem ao final de duas páginas de intensos elogios a Dom Pedro II,
inevitavelmente acabamos lembrando da citação de Allan Kardec no capítulo 23, e que foi muito menos elogiado do que
Dom Pedro II, isso sem falar no “Anjo Ismael”, exaustivamente promovido em todo
o livro.
Pedro
II é descrito pelo historiador José Murilo de Carvalho (2007) como uma pessoa
amável e simples. Segundo Carvalho (2007), o imperador era sabidamente
abolicionista e durante o seu reinado o Brasil viveu um dos períodos de maior
liberdade de imprensa. Corroborando
especulações de “Brasil, coração...”, Sales (2008) transcreve trecho de uma
carta do imperador a Zacaria Góes em que este se revela preocupado em relação à
guerra de sesseção para que o mesmo não acontecesse no processo de abolição no
Brasil. Entretanto, Segundo Holanda (2010) o próprio imperador admitiu que, se
estivesse no país em maio de 1888, a Lei Áurea não teria sido assinada. Pedro
II era ao mesmo tempo liberal e conservador. Para Thomas Skidmore (2012), no
episódio da Guerra do Paraguai, Pedro II demonstrou seu lado autoritário,
insistindo na manutenção da guerra impopular, mesmo havendo a possibilidade de
um acordo de paz. Ainda para este historiador, “era sob a autoridade do
imperador e de seus ministros que a polícia e o Exército caçavam escravos
fugidos e os devolviam aos senhores, às vezes para serem torturados e
mutilados”. Em 1845, os ingleses
impuseram uma lei realizando a prisão de toda a embarcação que estivesse no
Oceano Atlântico transportando escravos africanos. Essa pressão fez com que os
navios negreiros praticamente sumissem, bem como dobrou o preço dos escravos.
Daí que, entrando em cena o fator econômico, ele foi um dos principais fatores
da abolição.
Além
disso, o comentário “Em 1850 iniciava-se a plena supressão do tráfico negro,
realizando-se a Abolição, por etapas altamente significativas” é um comentário
muito parcial, na tentativa de “dourar a pílula” e considerar o Brasil um verdadeiro
“mundo cor de rosa”, como muitos dizem popularmente.
Segundo
Faber (acesso em 28/06/2015), “Sem alternativa, o governo brasileiro passou a
aprovar, gradualmente, uma série de leis e tratados que limitavam a escravidão
no país”. Dom Pedro II, em 1850, assina
a lei que proíbe o tráfico de escravos para o Brasil. Essa lei não alterava o
regime de escravidão no país, mas tornava os escravos mais valiosos, já que a
importação estava proibida.
Ora,
uma criança negra que em nasceu em 1850, só seria libertada em 1888, portanto,
aos 38 anos de idade. Essa criança teria nascido escrava, tendo sido filha de
escravos e criada como escrava, crescida com escrava, tendo adquirido a idade
adulta como escrava e provavelmente casando e tendo filhos dentro de um contexto
de escravidão. De fato, a “Lei do Ventre Livre”, que só entrou em vigor em
1871, foi considerada pouco eficiente, uma vez que, com os pais escravos,
muitas das crianças continuavam a ser criadas nas senzalas e sem clara
perspectiva de melhoria social significativa). Ao demais, 38 anos já não era
uma idade muito jovem, considerando a menor expectativa de vida da época,
principalmente considerando as condições de vida de uma senzala. Assim, afirmar
“realizando-se
a Abolição, por etapas altamente significativas”, sem a menor ressalva
em termos de crítica ao povo brasileiro por quase quatro séculos de escravidão,
mais do que politicamente incorreto, é evangélica e doutrinariamente
questionável, para não dizer claramente reprochável, ainda mais para um povo
que seria o “coração do mundo, a pátria do Evangelho”. Para o leitor que achar
que estamos exagerando e que a frase “realizando-se a Abolição, por etapas
altamente significativas”, é justificável, vale lembrar que o Brasil
foi um dos últimos países a abolir a escravidão e que os piores criminosos do
Brasil, nos dias atuais, muitos deles condenados a vários séculos de prisão, só
ficam na penitenciária no máximo 30 anos.
Na
transição da segunda para a terceira página do capítulo 25 (“A Guerra do
Paraguai”), o texto continua adiando o “indigesto” assunto da guerra
propriamente dita, mantendo uma temática de patriotismo exagerado, comentando
que “as falanges de Ismael não se
descuravam da Pátria do Evangelho...” e, mais à frente, já na página 175, “Foi assim que, naquela época de organização
da pátria, apareceram homens e artistas
extraordinários, como Rio Branco, e Mauá, Castro Alves e Pedro Américo, que
vinham com elevada missão ideológica, nos quadros da evolução política e social
da pátria do Cruzeiro”.
Perceba o leitor que já estamos na terceira
página do capítulo 25, denominado “A Guerra do Paraguai” e nem sinal de guerra.
Muito pelo contrário, somente elogios, alta espiritualidade, grandes
realizações, missionários e exaltação de várias figuras da história brasileira.
Curiosamente,
no fim desse quarto parágrafo, a mesma expressão “exorbitar das suas funções”, que foi utilizada para
“justificar” o assassinato do filho de Fernão Dias pelo próprio pai, é
utilizada para que o texto “coloque leve reparo” à atitude política brasileira
antes da guerra. Vejamos:
p.175 “...não
competia, porém, à política brasileira exorbitar das suas funções, no
intuito de assumir a direção da casa dos seus vizinhos”.
Portanto,
a política intervencionista brasileira, que foi um dos fatores predisponentes e
desencadeadores de uma guerra sem precedentes (assim como o assassinato de um
filho), é caracterizada pelo texto da mesma maneira: seria apenas um “...exorbitar
das suas funções...”. O texto trata ações graves com um eufemismo
inaceitável à luz da razão.
A
página 176, após afirmar que “as tropas
brasileiras depuseram Oribe” e comentar sobre a “supremacia arrogante da política brasileira”, o texto vai ficar
focado na figura de Dom Pedro II, o qual tem uma visão espiritual maravilhosa,
pois o próprio Mestre Jesus de Nazaré aparece para ele e recomenda que ele mude
a política brasileira, para uma atitude não intervencionista. Considerando que
estamos analisando um encontro com Jesus, o texto é até longo, e o Mestre deu
recomendações claras para Dom Pedro II (que é exaltado como grande missionário
no livro “Brasil Coração...”). Dom Pedro II, parece ter ignorado a orientação
do Mestre, pois dois parágrafos a seguir o texto finalmente começa a comentar
sobre o início da “...guerra que durou cinco longos anos de martírios e derrames de
sangue fraterno”. Sendo D. Pedro II um espírito superior, como
considerado no livro, não lhe caberia tal atitude arrogante.
No
fim da página 177 e no início da página 178 (décimo parágrafo do capítulo 25 –
“A Guerra do Paraguai”), o texto de uma forma um pouco confusa, apesar de
caracterizar Solano Lopez como “caudilho” e fazer algumas críticas ao ditador
paraguaio, chega a elogiar muitas de suas qualidades e questionar a imagem
histórica de Solano, sem explicitar bem sua opinião e muito menos explicar seus
argumentos. Na verdade, é difícil extrair qualquer informação clara desse
parágrafo.
Vejamos
alguns trechos do penúltimo parágrafo do capítulo 25:
p. 178. “Os
militares brasileiros ilustram o nome da sua terra em gloriosos feitos, que
ficaram inesquecíveis. Mas o país do Evangelho sempre foi contrário às glórias
sanguinolentas. Estero, Belaco, Curupaiti, Lomas Valentinas, Tuiuti, Curuzu,
Itorocó, Riachuelo e tantos outros teatros de luta e de triunfo, em verdade,
não passaram de etapas dolorosas de uma provação coletiva, que o povo
brasileiro jamais poderá esquecer.”
O texto segue uma linha confusa e
constrangedora de tentar valorizar o Brasil e suas conquistas, inclusive
vitórias militares, e fazer algumas ressalvas, pois, afinal, o nosso país é o
“coração do mundo, a pátria do Evangelho”. Ao mesmo tempo em que afirma que os
feitos militares ficaram inesquecíveis, diz que o Brasil é contrário às glórias
sanguinolentas. Mais uma contradição do texto.
Estranhamente,
após menos de uma página tratando da guerra do Paraguai propriamente
considerada, em um capítulo inteiro com esse nome, chegamos ao último parágrafo
do respectivo capítulo, e passada a “tempestade” do constrangimento e da confusão
entre elogios e leves críticas, o discurso patriótico volta com toda força.
Vejamos o início do último parágrafo:
p.178-179 “A
realidade, entretanto, é que o Brasil retirou desse patrimônio de experiências
os mais altos benefícios para a sua política externa e para a sua vida
organizada, sem
exigir um vintém dos proventos de suas vitórias”.
Vale
lembrar que segundo alguns dados históricos em torno de 75% da população do Paraguai foi dizimada (Storto e Aguilar
Filho, 2015) Cenas dantescas, dignas de genocídio, foram praticadas contra
mulheres e crianças no fim da famigerada guerra. Os soldados paraguaios no
final da guerra eram, em grande percentagem, meninos, alguns que mal tinham
atingido a puberdade e outros nem isso. A partir de determinado momento, o
Brasil já poderia ter encerrado sua ação militar na guerra, pois a guerra
estava há muito vencida (sobretudo, após a tomada de Assunção), e continuou com
o ataque. O texto ignora isso tudo e ainda afirma “...sem exigir um vintém dos
proventos de suas vitórias” para voltar ao seu ritmo normal de
exaltação do Brasil. Depois de destruir o país vizinho, que nunca mais se
recuperou de tamanha catástrofe, o texto ainda quer elogiar o Brasil por não
ter pedido indenização de guerra ao Paraguai.
Para
encerrar esse capítulo 25 (“A Guerra do Paraguai”), no qual é difícil tirar
algo de bom ou de doutrinário, há uma afirmação esquisitíssima. Vejamos:
p.179 “Nunca
mais o Brasil praticou uma intervenção indevida, trazendo em testemunho da nossa afirmativa a primorosa organização da nacionalidade
argentina que, apesar da inferioridade da sua posição territorial, comparada
com a extensão do Brasil, é hoje um dos países mais prósperos e um dos
núcleos mais importantes da civilização americana em face do mundo”.
Incrivelmente, o texto sugere que o Brasil
poderia ter feito uma intervenção militar na Argentina, considerando que a
mesma é inferior em extensão territorial em relação ao Brasil! E que somente
pelo fato do Brasil não ter feito isso tal “renúncia” já constitui “testemunho
da... afirmativa”. Quer dizer, como o Brasil não tentou
invadir, destruir ou anexar a Argentina como fez com o Paraguai, está
“testemunhado” o fato de que “Nunca mais o Brasil praticou uma intervenção
indevida”.
Nessa
altura, após analisar 25 dos 30 capítulos de “Brasil, coração...”, chega a ser
chocante constatar que esse livro foi a base literária espírita para a
assinatura do chamado “Pacto Áureo” e que continua sendo o livro mais divulgado
e propalado quando são comentados os temas “União” e “Unificação” concernentes
ao Movimento Espírita Brasileiro.
Capítulo 26 – O Movimento Abolicionista
O capítulo 26 inicia mantendo o mesmo padrão de
exaltação das personalidades de Dom Pedro II, da Princesa Isabel, de Ismael e
de sua falange. Dentro dessa linha de raciocínio, o texto tenta explicar, até
com argumentos, a priori, dignos de análise, porque Dom Pedro II não tomou a
atitude de abolir a escravidão. Vejamos se são convincentes:
p. 182 “...Desejaria
antecipar-se ao movimento ideológico, decretando a liberdade plena de todos os
escravos, mas os terríveis exemplos da guerra civil que ensanguentara os
Estados Unidos da América do Norte durante longos anos, na campanha
abolicionista, faziam-no recear a luta das multidões apaixonadas e delinquentes”.
De fato, a Guerra Civil Americana foi algo
terrível e seu exemplo certamente serviu de receio e principalmente de
argumento político para que Dom Pedro II adiasse indefinidamente a atitude
libertadora de promulgar a abolição da escravatura. No entanto, usar tal motivo
como único fator para justificar tal procrastinação é ser demasiadamente
simplista e ignorar a complexidade histórica, provavelmente para manter a
exaltação a um dos principais protagonistas que a obra “Brasil, coração...” resolveu
promover, no caso Dom Pedro II, e também toda a família imperial brasileira.
O
texto, por exemplo, ignora o fato de que grande parte da sustentabilidade do
poder político de Dom Pedro II era mantida pelos grandes proprietários rurais,
sobretudo cafeicultores, em sua maioria escravagistas, principalmente dos
Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Obviamente, Dom Pedro II
desejava a manutenção do poder imperial e sabia que a abolição da escravatura
abalaria sua estabilidade no poder (como, de fato, aconteceu, pois
aproximadamente um ano e meio após a
abolição da escravatura, aconteceu o “golpe”, que instaurou a república no
Brasil, isto é, a chamada “proclamação da república” em 15 de novembro de 1889).
Além
disso, se Dom Pedro II estivesse tão preocupado assim com a ocorrência de uma
guerra em função da abolição da escravatura, dada a sua extraordinária elevação
espiritual (conforme o texto enfaticamente assevera reiteradas vezes) e,
principalmente, se esse fosse o principal receio do Imperador, qual teria sido
a razão dele permitir a extensão temporal absurda da “Guerra do Paraguai”
(principalmente após 1868, não existia qualquer justificativa para a
continuação da guerra), na qual um país e praticamente um povo inteiro foi
dizimado?! Ele como líder máximo do país, em um regime cujo poder era
extremamente centralizado, não pode ser isentado da responsabilidade de grande
parte daquilo que praticamente poderia ser caracterizado como “um genocídio do
povo paraguaio”, sobretudo no fim da guerra.
Não
negamos que o sofrido exemplo norte-americano certamente tenha sido um dos
fatores considerados pelo Imperador ao adiar a abolição. Entretanto, permitir que a escravidão
chegasse às portas do século XX, muitos anos depois do fim da Guerra Civil Americana
não deixa de constituir uma possível “mancha moral” para o Imperador
(principalmente em termos de legado, sobretudo moral, o qual é enfatizado
positivamente pelo livro “Brasil, coração...”), sem falar da incrível “queda
moral” em que ele incidiu, junto com todo o povo brasileiro, com todo o
processo da Guerra do Paraguai. Afinal, o poder político estava centralizado na
figura do Imperador. Vale reforçar, uma vez mais, que, segundo o texto de
“Brasil, coração...”, Dom Pedro II teria recebido uma mensagem espiritual
belíssima, clara e contundente de nosso Mestre Maior, Jesus de Nazaré
(transcrita no próprio texto de “Brasil, coração...” no sétimo parágrafo do
capítulo 25 – “A Guerra do Paraguai”, nas páginas 176-177), para que o Brasil
não tivesse uma atitude intervencionista em relação aos países vizinhos, bem
antes do início da infeliz “Guerra do Paraguai”.
No
terreno apenas das reflexões, sabendo-se que o Imperador Dom Pedro II gozava de
prestígio junto aos políticos e os ricos senhores da zona rural, onde se
concentrava a maioria dos escravos, é de se perguntar: Sendo o homem digno que
se mostrava, culto (sabedor da abolição em tantos países), espiritualizado, por
que muito antes da abolição, ao menos, não decretou o fim dos terríveis
suplícios aplicados nos escravos? Obviamente não desconhecia essa crueldade
ímpar, secular... Eliminada tanta e tamanha maldade para com os escravos,
digamos por hipótese, no período de 1850 a 1855, poucos anos após haveria clima
para a abolição total. Aí, não existiria dúvida atribuída à Guerra da Secessão
nos EUA (1861 a 1865), nem as Leis do Ventre Livre (1871) e a do Sexagenário
(1885), e sim, a antecipação da abençoada Lei Áurea (de 1888). Supondo que a
tardança em abolir a escravidão foi opção imperial para não deflagrar maior
derramamento de sangue, comparativamente aos ocorridos na Guerra da Secessão
nos EUA e na Guerra do Paraguai, a “abolição” dos maus tratos aos escravos —
gesto de magnanimidade — certamente, ao menos, acalmaria em parte aos
abolicionistas. Eles que, cada vez mais numerosos, heroicos e enérgicos, tinham
junto de si a força da razão, da qual, evidentemente Dom Pedro II partilhava,
considerando sua condição espiritual. Uma dúvida difícil de se dissipar é se o
Imperador previa que a Abolição, implicitamente, representaria a extinção do
Império, o que de fato veio a acontecer um ano após, com a Proclamação da
República (1889) e o sempre triste exílio.
O
contexto sócio-econômico-cultural dos Estados Unidos da América era
completamente diferente daquele do Brasil do século XIX, de maneira que tal
argumento, utilizado para a manutenção da escravidão muitos anos após o fim da
“Guerra de Secessão”, em que pese que possa ser considerado, por si só não
justifica um adiamento tão dilatado.
O
texto de “Brasil, coração...” usualmente simplifica excessivamente situações
para respaldar postulações de evolução espiritual previamente propostas. Assim,
uma vez tendo sido afirmado que Dom Pedro II era um grande missionário, o texto
vai se empenhar em defender todas as ações de Dom Pedro II, por mais que esteja
óbvio que tal “maniqueísmo” é algo irracional e, portanto, não condizente com
“a fé inabalável”, isto é, “aquela fé que pode encarar a razão face a face em
todas as épocas da humanidade”.
Ademais,
o texto parece desprezar a inteligência do leitor, sobretudo do leitor
espírita, e sua capacidade de analisar criticamente um conteúdo de uma forma
geral, avaliando sua coerência e os argumentos associados a cada proposição.
Muitas das análises presentemente efetuadas poderiam, inclusive, ser feitas por
leitores não espíritas, pois estão associadas a incoerências do texto consigo
mesmo e com os fatos e contextos históricos (a divulgação geral, enfática e sem
ressalvas de tal obra pode, inclusive, desacreditar importantes lideranças
espíritas em relação a qualquer indivíduo com bom senso que realmente leia o
texto, seja ele espírita ou não). Além
dessas, o texto fica ainda mais fraco à luz da Doutrina Espírita, sem consistir
em contribuição sólida à formação doutrinária do estudante do Espiritismo.
Avaliemos
os comentários a respeito da Lei do Ventre Livre e as impressões de Dom Pedro
II sobre esse acontecimento:
p.
183 “Foi, pois, com especial agrado, que
acompanhou a deliberação de sua filha de sancionar, a 28 de setembro de 1871, a
Lei do Ventre Livre, que garantia no Brasil a extinção gradual do cativeiro,
mediante processos pacíficos. Seu grande coração, no âmbito das suas impressões
divinatórias, sentia que a abolição se faria nos derradeiros anos do seu governo.
Com efeito, a Lei do Ventre Livre não bastara aos espíritos exaltados no
sentimento de amor pela abolição completa”.
Ao
afirmar, sobre Dom Pedro II, que “seu grande coração, no âmbito das suas
impressões divinatórias, sentia
que a abolição se faria nos derradeiros anos de seu governo”, o texto tenta
dar um caráter de “acerto espiritual” de certa forma dogmática ao adiamento de
Dom Pedro II. Sempre sem explicar nada, sem a menor discussão sobre suas
postulações, ao afirmar “no âmbito das suas impressões divinatórias” o
texto sugere que Dom Pedro II estava inspirado “por Deus” em manter
indefinidamente a escravidão. E é claro que isso é altamente questionável.
Mas
o texto, não satisfeito, ainda faz uma afirmação ambígua, que, talvez, poderia
até ser interpretada como uma leve crítica aos abolicionistas que não ficaram
satisfeitos com tal medida ao invés da abolição total: “Com efeito, a Lei do Ventre Livre não bastara aos espíritos exaltados no sentimento de amor pela abolição completa”.
Ora, é claro que os abolicionistas não ficaram totalmente satisfeitos!
Perguntaríamos para o leitor amigo: era para ficar?! Essa ação paliativa não
alterou efetivamente a situação das crianças que acabavam nascendo nas
senzalas, pois seus pais eram escravos e pouca coisa mudou em suas condições de
vida e de perspectivas. Todavia, como o texto de “Brasil, coração...” promove
excessivamente a “Lei do Ventre Livre”, tem que defendê-la e não fica contente
com aqueles que não acharam a medida, naquela altura dos acontecimentos, apropriadas.
Para os abolicionistas (e com toda a razão!) já tinha passado, e muito, da hora
da abolição total! Isso é claro! Ou não somos cristãos?!
É
evidente que para um país que está sendo chamado de “Coração do Mundo, Pátria
do Evangelho” tal realidade constitui marca negativa do ponto de vista
moral/espiritual. Entretanto, aprendemos com o Espiritismo e com o Evangelho
que “Jesus não veio para os sãos, mas para os
doentes” e que o primeiro passo para efetivamente passarmos a viver o Evangelho
em nossos corações é admitir nossos erros morais, sem fugas psicológicas, para,
com sinceridade, sem vaidade ou falsa humildade, trabalharmos para melhorar a
nós mesmos.
Desta
forma, um livro em coerência com o Evangelho de Jesus e com a Doutrina Espírita
não faria um esforço para esconder nossos erros, mas admitiria nossas falhas
coletivas até para que nós, estudando o livro, melhorássemos o nosso
discernimento para errar cada vez menos, e fazer do Brasil, o quanto antes,
realmente, “o coração do mundo e a pátria do Evangelho”. Infelizmente, essa
lucidez doutrinária não é observada na obra “Brasil, coração...”.
Como
se não bastasse o altamente desconectado capítulo 23, intitulado “A obra de
Ismael”, o texto “abre uma espécie de parênteses” estranhíssimo para voltar a
contar a história da Federação Espírita Brasileira. De forma lamentável, o
texto volta a contar e promover a referida instituição, de maneira incoerente
com a sequência de temas desse capítulo 26 que é denominado “O Movimento
Abolicionista”. O que é mais estranho é que já foi redigido um capítulo
totalmente incoerente cronologicamente e que não valoriza ilustres
trabalhadores espíritas de outras instituições. Com muita dificuldade,
constatamos essa situação. Só que agora tudo piora, pois é meio que “enxertado”
um novo parágrafo em um capítulo referente à abolição para contar mais e
exaltar a Federação Espírita Brasileira. Vejamos o parágrafo:
p.183-184 “A esse tempo, já Ismael possuía a sua
célula construtiva da obra do Evangelho no Brasil, célula que hoje projeta a
sua luz de dentro da Federação Espírita Brasileira, e de onde, espiritualmente, junto dos
seus companheiros desvelados, procurava unir os homens na grandiosa tarefa da
evangelização. Esperando o ensejo de se fixar na instituição venerável, que lhe
guarda as tradições e continua o seu santificado labor ao lado das criaturas, a
célula referida permanecia com Antônio Luís Sayão e Bittencourt Sampaio, desde
24 de setembro de 1885, até que Bezerra de Menezes, com os seus grandes
sacrifícios e indescritíveis devotamentos, eliminasse as mais sérias
divergências e aplainasse obstáculos, utilizando as suas inesgotáveis reservas
de paciência e de humildade e consolidando a Federação para que se formasse uma
organização federativa. Enquanto, lá fora, muitos companheiros da caravana
espiritual se deixavam levar por inovações e experiências estranhas aos
preceitos evangélicos, o Grupo Ismael esperava uma época de compreensão
mais elevada e harmoniosa para o desdobramento de suas preciosas atividades.
Todavia, nas lutas pesadas do mundo, Bezerra de Menezes era o impávido
desbravador, no seu apostolado de preparação, fraternizando com todos os grupos
para conduzi-los, suavemente, à sombra da bandeira do grande emissário de
Jesus.”
Em primeiro lugar, a velha questão sobre as
múltiplas funções de Ismael ressurge. E surge, convenhamos, para um triste
desfecho. O texto sugere que Ismael finalmente tinha uma sede física para poder
trabalhar ao afirmar: “A esse tempo, já Ismael possuía a sua
célula construtiva da obra do Evangelho no Brasil, célula que hoje projeta a
sua luz de dentro da Federação Espírita Brasileira...”. Que lamentável
é perceber que o suposto mentor do Brasil estava tão limitado assim, pois sem a
construção de uma única instituição espírita do ponto de vista físico, de
alguma forma, ele se sentia limitado.
A projeção do Evangelho é tarefa para todos os
espíritas, cristãos, espiritualistas e até materialistas que sejam homens de
bem do Brasil e do Mundo. O Espiritismo, com o trabalho do Movimento Espírita,
através de cada espírita consciente, tem uma tarefa importante dentro desse
cenário. No entanto, a necessidade de exaltar uma única instituição, e, o que é pior, ainda fazer questão de
criticar outros irmãos espíritas que atuavam na época, só que em outras
instituições, mais do que triste, do ponto de vista moral, é algo
anti-doutrinário e desabonador em relação ao próprio texto.
Esse lamentável parágrafo não comenta
absolutamente nada sobre as questões que deveriam ser prioritárias no capítulo,
ou seja, sobre o desenvolvimento do processo político brasileiro para a
abolição da escravidão. Aliás, não chega a comentar nada significativo nem
sobre a ação dos espiritualistas e dos espíritas propriamente ditos nesse
processo. Mas o que mais choca é o comentário no meio do parágrafo “Enquanto,
lá fora, muitos companheiros da caravana espiritual se deixavam levar por
inovações e experiências estranhas aos preceitos evangélicos”,
sugerindo que boa parte dos participantes do movimento espírita vinculado a
instituições, que não eram exclusivamente a FEB, estavam em desvios
doutrinários, evangélicos e morais.
O
texto de “Brasil, coração...” continua sua saga de comentários de valor no
mínimo duvidosos:
p.185 “A
estatística oficial de 1887 acusava a existência de mais de setecentos e vinte
mil escravos em todo o país. O ambiente geral era de apreensão em todas as classes, ante a
expectativa da promulgação da lei que extinguiria a escravidão para sempre, o
que constituiria duro golpe na fortuna do Brasil. Mas Ismael articula do
Alto os elementos necessários à grande vitória. O generoso Imperador é
afastado do trono, nos primeiros meses de 1888, sob a influência dos mentores
invisíveis da pátria, voltando a Regência a princesa Isabel, que já havia
sancionado a lei benéfica de 1871...”
O
texto supracitado não deixa de ser um comentário bem estranho, sobretudo em um
livro considerado espírita, pois, estando em pleno ano de 1887, aparentemente
para valorizar a ação de Ismael, o texto ousa frisar os pontos supostamente
negativos da abolição (nessa altura dos acontecimentos!) afirmando que a “lei
que extinguiria a escravidão para sempre...constituiria duro golpe na
fortuna do Brasil”.
Dom Pedro II era um Espírito missionário ou
quem era um Espírito missionário era somente sua filha? Se ambos eram
missionários do bem, por que o Imperador foi afastado pelo Plano Espiritual?
Ele não tinha autoridade moral e missionária para decretar a Abolição? Se foi
por justa causa, que nós encarnados
desconhecemos, por que não agiu assim muito antes?
Melhor
seria se os dirigentes do país estivessem preocupados em fornecer algum recurso
material, mesmo que fosse mínimo, de valor simbólico, para os escravos tentarem
começar a vida em contextos menos desumanos. Jamais tal preocupação entrou na
pauta das preocupações dos dirigentes do país, e muitos escravos saíram da
senzala para a mendicância nas cidades. A preocupação parece que era a fortuna
dos fazendeiros e, possivelmente, o apoio político deles, que poderia ser
perdido por Dom Pedro II.
De
fato, depois de decantar, em vários capítulos, todos os predicados espirituais
do Imperador Dom Pedro II, o texto aparentemente cai em contradição (mas sem,
logicamente, frisar isso explicitamente!). Vejamos:
p. 185 “...o que constituiria duro golpe na
fortuna do Brasil. Mas Ismael articula do Alto os elementos necessários à
grande vitória. O generoso Imperador é afastado do trono, nos primeiros
meses de 1888, sob a influência dos mentores invisíveis da pátria,
voltando a Regência a princesa Isabel, que já havia sancionado a lei benéfica
de 1871...”.
Ora,
o texto sugere fortemente que o Imperador Dom Pedro II foi afastado do trono
para que a abolição ocorresse, dando a entender que a mesma não ocorreria, pelo
menos na época em que aconteceu (seria adiada ainda mais?), se a administração
do governo não estivesse com a princesa Isabel . Se isso é verdade, nós
teríamos mais um motivo, entre vários outros, para questionar a tão reiterada
exaltação espiritual dedicada a Dom Pedro II, que contempla vários capítulos do
livro “Brasil, coração...”.
Para
exaltar, mais uma vez, a figura de Ismael, vejamos o comentário no penúltimo
parágrafo:
p.186 “Junto
do espírito magnânimo da Princesa, permanece Ismael com a bênção da sua
generosa e tocante alegria. Foi por isso que Patrocínio, intuitivamente, no
arrebatamento do seu júbilo, se arrastou de joelhos até aos pés da Princesa
piedosa e cristã”.
Tamanho
culto à personalidade ismaelina, através, inclusive, do registro de
manifestações exteriores católicas, como é o caso em tela, é tão exagerado que
chega a gerar constrangimentos para nós, leitores espíritas. Tais exageros
acabam passando do limite do bom senso.
Vejamos
o último parágrafo:
p. 186 “Os
negros e os mestiços do Brasil sentiram no coração o prodigioso potencial de
energias da sub-raça, com que realizaram gloriosos feitos de trabalho e
de heroísmo, na formação de todos os patrimônios da Pátria do Evangelho...”.
“Sub-raça”?
Essa expressão constitui comentário
infeliz para fazermos referência a irmãos espirituais. Interessante notar que
não é a primeira vez que determinado grupo de Espíritos é tratado como “raça”
no presente texto. Isso não faz sentido em um texto espírita. Aliás, texto espírita supostamente promotor
de “união” e “unificação” do movimento espírita brasileiro.
Do ponto de
vista científico, o conceito de raça não pode ser aplicado a seres humanos por
não existirem genes raciais na nossa espécie, conforme ficou comprovado pelo
Projeto Genoma (concluído com sucesso em 2003). Às questões nº 115 e 116 de “O
Livro dos Espíritos” o Espiritismo proclama que “Deus criou todos os Espíritos
simples e ignorantes, ou seja, sem conhecimento, que adquirirão passando pelas
provas da vida (progredindo por esforço próprio, segundo a Lei da Evolução). Será mesmo que “os negros e os mestiços do
Brasil” sentiram-se como descrito? “Gloriosos feitos de trabalho”... para quem?
“Heroísmo”? Sob chibatas?...
O
último parágrafo continua:
p. 186 “E,
nessa noite, enquanto se entoavam
hosanas de amor no Grupo Ismael e a Princesa imperial sentia, na sua
grande alma, as comoções mais ternas e mais doces...”.
Será
que eram “entoados hosanas de amor” apenas “no Grupo Ismael”?
Capítulo 27 – A república
O capítulo 27 começa com uma breve introdução
sobre a transição brasileira envolvendo os períodos da “monarquia” e
“república”. Após breves comentários introdutórios, o texto destaca uma reunião
no mundo espiritual. Jesus teria reunido “as
falanges benditas de Ismael” (p.188) para fornecer orientações e o narrador
comenta “...falou a sua voz, como no
crepúsculo admirável do Sermão da Montanha...” Vejamos algumas passagens:
p. 189 “Consolidareis o templo de Ismael, para que do seu núcleo possam
expandir-se, por toda a extensão territorial da pátria brasileira, as
claridades consoladoras da minha doutrina de redenção, de piedade e de
misericórdia...”.
Jesus, em seu Evangelho, afirma
à Samaritana (que havia interrogado o Mestre sobre o local em que ela deveria
adorar a Deus, na Samaria (no monte Gerizim) ou em Jerusalém (no templo)) e o
Mestre teria respondido: “Chegará o dia em que Deus será adorado em Espírito e
Verdade”. Em todo o Evangelho, não encontramos passagens que denotam a
preocupação de Jesus com a construção e consolidação de “templos”. “Ide e
ensinai a todas as criaturas” dizia simplesmente o Mestre. Até porque para
viver o Evangelho todo lugar do Universo é templo de Deus. Assim sendo, é muito
estranho observar Jesus afirmar “Consolidareis o templo de Ismael...”. Aliás, Jesus teria afirmado que o
referido templo era “de Ismael”?! Se admitíssemos a realidade do comentário
sobre o templo, não seria de esperar que o Mestre falasse algo como, “templo de
Amor”, “templo de fraternidade”, “templo da iluminação espiritual”, ou outra
coisa do gênero?!
Considerando as dimensões quase
continentais do Brasil e que, atualmente, temos mais de 5.500 municípios no
Brasil, será que de um único “núcleo”
haveria a expansão, “...por toda a
extensão territorial da pátria brasileira” das “claridades consoladoras da...doutrina” do Mestre?! Vale lembrar
que nem a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas de Allan Kardec recebeu
mensagens que a distinguiam tão enfaticamente. Com todo o respeito que toda e
qualquer instituição espírita no mundo físico mereça (e merecem mesmo, vide “O
Centro Espírita” de J. Herculano Pires), a instituição é uma célula do
Movimento Espírita e tem um valor dependente da qualidade doutrinária, moral e
evangélica que é ensinada e vivenciada na respectiva casa. Kardec jamais
hipervalorizou as instituições, tanto é que teve problemas na própria Sociedade
Parisiense de Estudos Espíritas. O Espiritismo, isto é, a Doutrina, deve
dirigir o Movimento Espírita e não o contrário (o Movimento distorcer a
Doutrina de acordo com as opiniões meramente pessoais de confrades ou grupo de
confrades). Neste caso, a hipervalorização da instituição espírita parece uma
inversão de valores.
p. 189 “A Nova Revelação não é dada para que se opere a conversão compulsória
de César às coisas de Deus, mas para que César esclareça o seu próprio coração,
edificando-se no exemplo dos seus subordinados...”.
Essa passagem é até razoável,
mas cabe uma pequena reflexão. Aparentemente, o sentido da palavra “César”, que
obviamente faz alusão ao aforismo de Jesus “Dai a César o que é de César e a
Deus o que é de Deus”, está ligeiramente distorcido em relação ao sentido
original que Jesus forneceu a essa expressão em seu Evangelho. No Evangelho,
“César” não seria a antítese de Deus ou das “coisas de Deus” (como sugere o
texto de “Brasil, coração...”, a ponto de ser cogitada a sua “conversão”, mesmo que não compulsória “às coisas de Deus”). “César” seria
apenas a representação das nossas obrigações materiais e compromissos mais
associados à vida física na crosta terrestre. Portanto, no Evangelho, Jesus não
está criticando “César”, no sentido que o Mestre dá a essa palavra, pois, se
fosse o caso, ele não teria recomendado que “déssemos a César o que é de
César”. O Mestre apenas recomenda que, em nossa vida física, tivéssemos
equilíbrio e responsabilidade tanto perante nossas obrigações mais associadas
ao chamado terra-a-terra como no que se refere às questões mais ligadas às questões
espirituais propriamente ditas. Até porque ambas tem como finalidade nossa
evolução espiritual global e não são mutuamente excludentes.
A explanação de Jesus denota que
o Mestre vê positivamente a instalação do regime republicano no Brasil.
Vejamos:
p. 190 “A proclamação da República brasileira, como
índice da maioridade coletiva da nação do Evangelho, há de fazer-se sem
derramamento de sangue, como se operaram todos os grandes acontecimentos que
afirmaram, perante o mundo, a pátria do Cruzeiro, os quais se desenvolveram sob
a nossa imediata atenção”.
É questionável a afirmativa “...sem
derramamento de sangue, como se operaram todos os grandes acontecimentos que
afirmaram, perante o mundo, a pátria do Cruzeiro...”, pois a escravidão
e a Guerra do Paraguai (que não deixou de contribuir para “afirmar, perante o
mundo, a pátria do Cruzeiro”) foram episódios importantes, muito relacionados à
política externa brasileira. Ora, admitindo-se essa premissa, não seria
adequada a colocação “...sem derramamento de sangue...”.
Continuemos, e identifiquemos,
uma vez mais, que Jesus, segundo o texto, estaria aprovando o movimento
republicano:
p. 190 “Acordemos a alma brasileira para a luminosa
alvorada desse nova dia!”.
Dom Pedro II era um homem zeloso de suas obrigações
para com nosso país. A proclamação da república não era exatamente vontade
popular, e sim de um grupo de militares. O Imperador, destituído do seu trono,
não se revoltou, nem tentou impedir a queda da monarquia. Segundo os
historiadores, consta que ao deixar o Brasil teria sido ofertada quantia em
dinheiro para ele se manter no exílio, o que recusou veementemente. Quanto à
“luminosa alvorada desse novo dia” (no regime republicano), ainda não ocorreu,
ao contrário, nos anos de agora temos trevas
políticas, baixíssimos níveis educacionais e triste quadro de desvios dos
bens públicos.
De fato, o capítulo passa a
narrar o processo associado à proclamação da república propriamente dita (p.
191). De forma contraditória, o texto ora exalta o pensamento republicano e
seus idealizadores brasileiros (“...a 15
de novembro de 1889, com a bandeira do novo regime nas mãos de Benjamin
Constant, Quintino Bacaiúva, Lopes Trovão, Serzedelo Correia, Rui Barbosa e
toda uma plêiade de inteligências cultas e vigorosas...”), ora critica o
movimento e sua atitude (“O grande
Imperador recebe a notícia com amarga surpresa. Deodoro, que era íntimo do seu coração e da sua casa, voltava-se agora
contra as suas mãos generosas e paternais. Todos os ambientes monárquicos
pesam esse ato de ingratidão clamorosa,
mas a verdade é que todos os republicanos eram amigos íntimos de D. Pedro; quem
não lhe devia, no Brasil, o patrimônio de cultura e liberdade?”.
Aparentemente, como o livro “Brasil, coração...” enaltece em vários capítulos a
figura de Dom Pedro II, sente-se constrangido a reprovar o movimento
republicano que derrubou o Imperador, mesmo que o dia da proclamação da
república fosse caracterizado, pelo próprio Jesus (segundo o texto de “Brasil,
coração...”), como sendo “a luminosa alvorada desse novo dia”.
Reforçando
a impressão discutida acima, o capítulo é encerrado com uma frase famosa:
p.193 “– Acabou-se a única República que existia
na América – o Império do Brasil”.
Portanto, o capítulo é concluído
com uma espécie de lamentação, de tristeza com a constatação do fim do Império,
mesmo que, poucos parágrafos atrás, Jesus tenha caracterizado tal momento como
“a
luminosa alvorada desse nova dia”.
Capítulo 28 – A Federação
Espírita Brasileira
No início do capítulo 28 (p. 195), o texto
comenta a respeito dos trabalhos de Ismael após a proclamação da República:
p. 195 “...Seu primeiro cuidado foi examinar todos
os elementos, procurando
reafirmar, no seio dos ambientes espiritistas, a necessidade da obra
evangélica, no sentido de que ressurgisse a doutrina de tolerância e de
amor, de piedade e perdão, do Crucificado”.
O comentário acima denota que o
autor ignora ou não valoriza a Codificação Kardequiana, como deveria ser
esperado em um texto espírita. Ora, “a doutrina de tolerância e de amor, de
piedade e perdão” de Jesus já tinha ressurgido com a Codificação
Kardequiana, com especial destaque para a publicação de “O Evangelho Segundo o
Espiritismo”. Por conseguinte, não precisaria ressurgir, pois já tinha
ressurgido com Kardec. Novamente, trata-se de contradição com o primeiro livro
de Humberto de Campos através da mediunidade de Chico Xavier, que é “Crônicas
de Além-Túmulo” (Capítulo 21 – “O Grande Missionário”).
Na página seguinte (p. 196),
segundo parágrafo do capítulo, o texto comenta o seguinte:
p. 196 “...O abnegado mensageiro do Mestre,
começando o movimento de organização nos primeiros dias de 1889, prepara o
ambiente necessário para que todos os companheiros do Rio ouvissem a palavra
póstuma de Allan Kardec, que, através, do médium Frederico Júnior, forneceu as
suas instruções aos espiritistas da capital brasileira exortando-os ao estudo,
à caridade e à unificação”.
Em um texto adjetivado como é “Brasil,
coração...”, causa estranheza que a citação ao Codificador Allan Kardec não
tenha nenhuma adjetivação, caracterização ou elogio qualquer ao Mestre Lionês.
E isso em um capítulo que começa com “...O abnegado mensageiro do Mestre...”,
em referência ao Espírito Ismael. Em capítulo anterior, quando Allan Kardec foi
citado por primeira vez, tal tendência já havia sido percebida e isso é
repetido nesse capítulo 28. Também é estranha a utilização do termo
“unificação”, atribuída ao Mestre de Lyon, para o contexto que o movimento
espírita vivia naquele tempo.
O parágrafo subsequente
(terceiro parágrafo do capítulo 28) traz as seguintes informações:
p. 28 “Bezerra de Menezes, que já militava
ativamente nos labores doutrinários, recebeu a palavra do Alto com o alma
fremente de júbilo e de esperança, e considerou, no campo de suas
meditações e de suas preces, a necessidade de se reunir a família espiritista
brasileira sob o lábaro bendito de Ismael, a fim de que o mundo conhecesse o
Cristianismo restaurado”.
Obviamente, Bezerra de Menezes foi e é um
grandíssimo missionário e é um dos grandes expoentes da história do movimento
espírita. Entretanto, o fato de um Espírito encarnado decidir, pessoalmente,
como se organizaria a estrutura do movimento espírita consiste em um passo
muito grande para qualquer missionário. Quando Allan Kardec passou por
dificuldades e dúvidas, consultou os Mentores Espirituais. Isso pode ser
observado claramente em “Obras Póstumas”, quando, por exemplo, Allan Kardec é
aconselhado a não processar Dom Palau, o bispo de Barcelona que liderou o
famoso Auto-de-fé ; ou quando ele recebe orientações sobre sua saúde; ou na
ocasião que recebeu esclarecimentos sobre sua missão pessoal, em mensagem de “O
Espírito de Verdade”; ou quando solicitou e teve acesso a informações sobre seu
sucessor etc. Exceto Jesus, que como diriam Kardec e Eurípedes Barsanulfo, era
“o médium de Deus”, todo e qualquer outro mentor não deixa de ser pupilo de
Entidades maiores, e temos que admitir que a orientação vem do mundo espiritual
para cá e não o contrário. Até porque, de acordo com a Codificação, sabemos que
a matéria obstrui as percepções e informações que são acessíveis ao Espírito e,
por maior que seja seu discernimento, será menor do que se estivesse no mundo
espiritual. De fato, todos os grandes missionários notáveis do movimento
espírita recebiam significativa orientação espiritual em diversas
circunstâncias problemáticas de suas respectivas. Exemplos não faltam, mas
podemos citar só a título de ilustração, Eurípedes Barsanulfo, Chico Xavier,
Divaldo Pereira Franco, Yvonne Pereira, entre outros.
O texto continua contando a
história da instituição-título do capítulo nos parágrafos subsequentes. Já
questionamos isso em capítulos anteriores e não vamos alongar tal discussão.
Todavia, frisamos que os espíritas de outras instituições poderiam e deveriam
ter sido mencionados, considerando que a tarefa de implantação e
desenvolvimento do Espiritismo no país caberia e cabe a todo espírita sincero,
independentemente de sua vinculação institucional. Além disso, temos que
lembrar que a implantação do Evangelho no Brasil não é tarefa exclusiva dos
espíritas, mas de todos os espiritualistas e pessoas de bem.
Na página 198, Jesus orienta
Ismael. Vejamos:
p.198 “Procurarás, entre todas as agremiações da
Doutrina, aquela que possa reunir no seu seio todos os agrupamentos; colocarás
aí a tua célula, a fim de que todas as mentalidades postas na direção
dos trabalhos evangélicos estejam afinadas pelo diapasão da tua serenidade e do
teu devotamento à minha seara...”.
O texto transcrito acima é
muitíssimo estranho e contraditório em relação ao próprio texto de “Brasil,
coração...”, pois, em vários capítulos anteriores já estava claro que a escolha
já havia sido feita muito anteriormente. Na verdade, não teria sido nem uma
escolha, mas um projeto já previamente definido no mundo espiritual. Mas, esse
texto acima contradiz isso, dando a entender que não havia projeto prévio, mas
haveria uma seleção por mérito a partir das instituições que já existiam. De
fato, Jesus utiliza o tempo futuro: “Procurarás,
entre todas as agremiações da Doutrina, aquela que possa reunir no seu seio
todos os agrupamentos...”. É mais uma contradição do texto de “Brasil,
coração...” consigo mesmo, entre inúmeras outras.
E o texto continua sua
fastidiosa saga comentando uma única instituição espírita (e não o movimento
espírita nascente como um todo, e muito menos a história espiritual do Brasil
em sua totalidade). Parece que novamente há uma descontinuidade histórica. O
texto chega a citar o endereço da sede física da instituição em questão:
p. 199 “...e a caridade foi e será sempre o
inabalável esteio da venerável
Instituição que hoje se ergue na avenida Passos...”.
O texto também utiliza
expressões grandiloquentes sem maior significado espírita, tais como
“santuário” e “trabalhadores do Infinito”:
p.199 “...o Grupo Ismael, que constitui o seu
santuário de ligação com os trabalhadores do Infinito...”.
O texto, perdendo o foco em
relação a qualquer linha narrativa ou temática, passa a dar orientações
organizacionais para o Movimento Espírita de todos os tempos:
p. 200 “...Podem as inquietações da Terra separar,
muitas vezes, os trabalhadores humanos no seu terreno de ação, mas a sociedade
benemérita, onde se ergue a flâmula luminosa – “Deus, Cristo e Caridade” –
permanece no seu porto de paz e de esclarecimento. A sua organização federativa é o programa ideal
da Doutrina no Brasil, quando chegar a ser integralmente compreendido por todas
as agremiações de estudos evangélicos no país”.
No penúltimo parágrafo do
capítulo 28, o texto, novamente, comenta algo a priori muito inusitado,
aparentemente tomando partido da instituição-título do capítulo, no que se
refere possivelmente a polêmicas doutrinárias (o que fica implícito no texto).
O narrador comenta sobre a opinião a respeito da instituição-título do capítulo
por parte de outros grupos doutrinários, os quais somente agora apareceram na
história (vale ressaltar um detalhe: logo no início do texto, é afirmado “antiga
Instituição”; ora isso é estranhíssimo, pois estamos ainda na
transição dos séculos e a instituição não é antiga, da perspectiva do narrador
da história):
p. 200 “A realidade é que, considerada às vezes
como excessivamente conservadora, pela inquietação do século, a respeitável e antiga
Instituição é, até hoje, a depositária e diretora de todas as atividades
evangélicas da pátria do Cruzeiro. Todos os grupos doutrinários, ainda os
que se lhe conservam contrários, ou indiferentes, estão ligados a ela por laços
indissolúveis no mundo espiritual”.
Sem dúvida, todas as instituições espiritas
são, ou deveriam ser, unidas no ideal espírita. Mas todas, sem exceção, têm
elevadas responsabilidades evangélico-doutrinárias. Acreditar e frisar que uma
única instituição é “a depositária e diretora de todas as atividades evangélicas da pátria
do Cruzeiro”, não deixa de ser comentário muito questionável sob
quaisquer aspectos nos quais possam ser analisados.
Capítulo 29 – O Espiritismo
no Brasil
Na segunda página do capítulo 29, o quinto
parágrafo faz algumas afirmativas questionáveis. Analisemos:
p.204 “Enquanto na Europa a ideia espiritualista era somente objeto de observações e
pesquisas nos laboratórios, ou de grandes discussões estéreis no terreno da
Filosofia, não obstante os primores morais da Codificação kardequiana, o
Espiritismo penetrava o Brasil com todas as suas características de Cristianismo Redivivo, levantando
as almas para uma nova alvorada de fé”.
Pode-se perceber que a história
brasileira estacionou no fim do século XIX, chegando no máximo à transição do
século XIX para o século XX há alguns capítulos. Portanto, o texto, nesse
momento, ainda diz respeito à transição do século XIX para o século XX.
Realmente, é inegável que a
religiosidade previamente adquirida e cultivada pelo povo do Brasil gerou
condições propícias para que a Doutrina Espírita conseguisse ser implantada e
crescer em nosso país. O Cristianismo dominante e as contribuições religiosas
de origens indígena e africana, além do crescimento cultural principalmente dos
grandes centros brasileiros no fim do século XIX, forneceram as condições
básicas para que o Espiritismo pudesse sensibilizar muitos pioneiros. Ocorre
que o texto desmerece as contribuições europeias nas áreas científicas e
filosóficas, além de restringir a contribuição dos europeus a essas áreas, sem
considerar uma eventual, mesmo que menor, participação no avanço do pensamento
religioso. Vejamos:
p.204 “...na
Europa a ideia espiritualista era somente objeto de observações e pesquisas
nos laboratórios, ou de grandes discussões estéreis no terreno da Filosofia,
não obstante os primores morais da Codificação kardequiana, o Espiritismo
penetrava o Brasil com todas as suas
características de Cristianismo Redivivo...”.
O narrador esquece o grande número de
extraordinários missionários continuadores do trabalho de Allan Kardec que
atuavam ativamente nessa época. Ignorar, no caso religioso, e não valorizar nas
esferas filosófica e científica, a contribuição desses grandes continuadores do
pensamento kardequiano não parece ser comentário justo. Até porque o tríplice
aspecto da Doutrina Espírita é interdependente, isto é, não possível uma
separação cabal entre os três aspectos doutrinários.
Só para termos uma ideia,
podemos lembrar que os dois maiores apóstolos do Espiritismo, estavam atuando
intensamente na Europa nessa época: Léon Denis, centrado sobretudo nas
implicações filosóficas da Doutrina Espírita, mas não somente nelas (vide, por
exemplo, a monumental obra “Cristianismo e Espiritismo”, claramente de conteúdo
filosófico-religioso, mas centrada na questão religiosa); e Gabriel Delanne,
que desenvolveu pesquisas espíritas de alta relevância para a comprovação da
imortalidade da alma e compreensão do fenômeno mediúnico, além da questão
reencarnatória. Mas não somente os dois maiores apóstolos do Espiritismo
posteriores a Allan Kardec, os quais, comente-se de passagem, são citados no
próprio “Brasil, coração...” no capítulo 22 (seria mais uma contradição do
texto?), mas também Camille Flammarion (igualmente citado no capítulo 22) e
Gustave Geley, Cesare Lombroso, Arthur Conan Doyle, entre outros. Denis,
Delanne, Flammarion e Geley, por exemplo, desencarnariam somente em meados da
década de 20, portanto na virada do século XIX para o século XX estavam no auge
de suas contribuições ao movimento espírita. E poderíamos citar muitos outros,
tais como José Maria Fernandez Colavida (o “Kardec Espanhol”) e o Conde Albert
de Rochas etc.
Portanto, desvalorizar o
trabalho desses missionários com comentários como, por exemplo, “grandes
discussões estéreis no terreno da Filosofia”, é algo inadequado
em texto espírita. Ademais, denota uma visão “separatista” dos três aspectos da
Doutrina Espírita, o que não corresponde à realidade.
Ainda no mesmo parágrafo, há
outro comentário questionável:
p. 204 “...e é por isso que todos os grupos
sinceros do Espiritismo, no país, têm as suas águas fluidificadas, a
terapêutica do magnetismo espiritual, os elementos da homeopatia, a cura das
obsessões, os auxílios gratuitos no serviço de assistência aos necessitados...”.
Em que pese o nosso grande
respeito à homeopatia, e o conhecimento da realidade de que muitos espíritas
utilizam a terapêutica homeopática, colocar a homeopatia ao lado dos trabalhos
convencionais da Casa Espírita não deixa de constituir perigosa adição. Apesar de
Hahnemann ter sido um dos Espíritos que contribuiu com a Codificação
Kardequiana, a homeopatia não deve ser considerada prática usual dos Centros
Espíritas.
Na verdade, essa é a segunda vez
que significativa referência à homeopatia é feita no texto de “Brasil,
coração...”, só que essa segunda pareceu-nos ainda mais contundente e
equivocada do que a primeira (por isso, não citamos a anterior, inserta no
capítulo 23 – “A Obra de Ismael”, terceiro parágrafo). No entanto, dentro desse
contexto, transcreveremos a respectiva passagem para análise dos leitores:
p.162 (cap. 23,
terceiro parágrafo) “Nas suas luminosas
pegadas, seguiram, mais tarde, outros pioneiros da Homeopatia e do Espiritismo,
na Pátria do Evangelho. Foram eles, os médicos homeopatas, que iniciaram aqui
os passes magnéticos, como imediato auxílio das curas. Hahnemann conhecia a
fonte infinita de recursos do magnetismo espiritual e recomendava esses
processos psicoterápicos aos seus seguidores”.
Retornando à página 204, outra
colocação questionável do ponto de vista doutrinário:
p. 204 “Não é raro vermos caboclos que engrolam a
gramática nas suas confortadoras doutrinações, mas que conhecem o segredo
místico de consolar as almas...”.
Apesar de respeitarmos sinceramente o trabalho
dos vários movimentos espiritualistas, a colocação, que podemos inferir como
uma (no mínimo) sutil referência à umbanda, merece uma certa atenção. Ademais,
a expressão “o segredo místico” também acaba piorando o texto como um todo.
Portanto, no mesmo parágrafo, o
texto, a priori, mistura Espiritismo, Homeopatia e Umbanda (e talvez,
indiretamente, outros movimentos do sincretismo africanista no Brasil), sem
maiores explicações.
No parágrafo seguinte (sexto
parágrafo), o texto volta a valorizar o trabalho espírita do Brasil, em
detrimento do trabalho espírita da Europa:
p. 205 “A Europa recebeu a Nova Revelação sem
conseguir aclimá-la no seu coração atormentado pelas necessidades mais duras.
As próprias sessões mediúnicas são ali geralmente remuneradas, como se esses
fenômenos se processassem tão-somente pelas disposições estipuladas num
contrato de representações, enquanto no Brasil, todos os espiritistas sinceros
repelem o comércio amoedado, nas suas sagradas relações com o plano invisível,
conservando as intenções mais puras no hostiário da sua fé”.
Em primeiro lugar, o texto continua ignorando o
trabalho de abnegados seareiros espíritas, tais como Léon Denis e Gabriel
Delanne, que desencarnaram praticamente cegos e doentes em função de trabalho
hercúleo em prol da Doutrina Espírita. Léon Denis, por exemplo, somente veio a
desencarnar muitos anos após a virada do século, no dia 12 de Abril de 1927,
tendo trabalhado até seus últimos dias de vida tal como ocorrera com Gabriel
Delanne (que desencarnou em 15 de Fevereiro de 1926) e Gustave Geley (que
desencarnou precocemente, 14 de Julho de 1924, aos 56 anos de idade, em
desastre de avião quando voltava para a França após participar de reunião de
materializações na Polônia. Detalhe: após haver assistido, em Varsóvia, a
várias sessões com Franek Kluski, retirado dos destroços, ainda segurava a
valise que continha fragmentos de moldes em parafina obtidos nas sessões de
materializações).
O texto comete uma grosseira
incoerência para valorizar o trabalho brasileiro, afirmando “...enquanto
no Brasil, todos os espiritistas sinceros repelem o comércio amoedado, nas suas sagradas relações com o plano
invisível”. Ora, “todos os espiritistas sinceros” do
mundo inteiro, sem exceção, “repelem o
comércio amoedado, nas suas sagradas relações com o plano invisível”, ou
não seriam espíritas, muito menos sinceros!
Qualquer trabalho, mediúnico ou não, que gera renda financeira para quem
quer que seja, não é trabalho espírita! Quanto mais trabalho de “espiritistas
sinceros”. Para diminuir a importância do trabalho espírita europeu em
relação ao brasileiro, não é usado para os europeus, a expressão “espiritistas
sinceros”. O comentário sobre os europeus é, portanto, geral e estaria
no vasto campo do espiritualismo/mediunismo, não se restringindo ao
Espiritismo. Pois é óbvio que existiam muitos “espiritistas sinceros” na
Europa.
Para concluir esse
complicadíssimo parágrafo ressaltamos a expressão “hostiário da sua fé”,
denotando, uma vez mais, o uso excessivo de expressões tipicamente católicas.
No sétimo parágrafo do capítulo
29, o texto tenta explicar os problemas do movimento espírita:
p. 205-206 “...as entidades perturbadoras se aproveitam dos
elementos mais acessíveis da natureza humana para fomentar a discórdia, o
demasiado individualismo, a vaidade e a ambição, desunindo as fileiras que,
acima de tudo, deveriam manter-se coesas para a grande tarefa da educação dos
Espíritos, dentro do amor e da humildade. A essas forças, que tentam a
dissolução dos melhores esforços de Ismael e de suas valorosas falanges do
Infinito, deve-se o fenômeno das excessivas edificações particularistas do
Espiritismo no Brasil, particularismos que descentralizam o grande labor da
evangelização. Mas, examinando semelhante anomalia, somos forçados a
reconhecer que Ismael vence sempre. Construídas essas obras, que se
levantam com pronunciado sabor pessoal, o grande mensageiro do Divino Mestre as
assinala imediatamente com o selo divino da caridade, que, de fato, é o
estandarte maravilhoso a reunir todos os ambientes do Espiritismo no país, até
que todas as forças da Doutrina, pela experiência própria e pela educação,
possam constituir uma frente única de espiritualidade, acima de todas as controvérsias”.
O texto de “Brasil, coração...”,
como já foi comentado, é contraditório em relação ao papel de Ismael na
espiritualidade. Todavia, aparentemente (analisando todo o conjunto dos
capítulos muitas vezes contraditórios), podemos inferir que o livro tentou
passar uma função de liderança tríplice para Ismael: do Brasil; do Movimento
Espírita Brasileiro; e de uma instituição espírita em particular. Sendo assim,
é algo desagradável observar que no parágrafo transcrito acima, o texto parece
vincular Ismael somente à Federação Espírita Brasileira, para criticar grande
parte de todo o restante do movimento espírita brasileiro, sobretudo os
confrades que não concordam totalmente com as opiniões doutrinárias dessa
instituição. O texto passa a ideia de que quem não concorda com as respectivas
liderança e centralização estaria obsedado, e essa obsessão seria causada por
uma série de mazelas morais por parte desses confrades de opiniões diferentes.
Ademais, é repetida uma frase
que já foi pronunciada em capítulo anterior:
p. 206 “...somos
forçados a reconhecer que Ismael vence sempre...”.
Talvez fosse melhor enfatizar
que “Jesus vence sempre”. Melhor ainda seria: “... o Bem vence sempre”
Vale
lembrar que temos a realmente certeza da Vitória Total do Bem e de Jesus! Mas,
essa Vitória não será implantada na Terra por “decreto”. Leon Denis afirma logo
no início de “No Invisível” que “O Espiritismo será aquilo que os homens
fizerem dele”. Assim, somente com o estudo sério e a troca sincera de ideias e
informações “conheceremos a Verdade para que ela liberte-nos”.
No parágrafo seguinte (oitavo
parágrafo do capítulo 29), ainda na página 206, é reforçada a ideia da vitória
de Ismael mais uma vez:
p. 206 “É para essa grande obra de unificação que
todos os emissários cooperam no plano espiritual, objetivando a vitória de
Ismael nos
corações. E os discípulos encarnados bem poderiam atenuar o vigor das
dissensões esterilizadoras, para se unirem na tarefa impessoal e comum,
apressando a marcha redentora”.
Em relação à recomendação do
texto “E os discípulos encarnados bem poderiam atenuar o vigor das
dissensões esterilizadoras, para se unirem na tarefa impessoal e comum,
apressando a marcha redentora”, estamos de acordo. A questão é
saber se o texto quer que apenas os que não concordam com a instituição de
Ismael cedam ou se todos, sem exceção, têm que ceder um pouco?
O parágrafo continua com uma
análise estranha fazendo uma forte correlação entre Espiritismo e Catolicismo.
Além disso, novamente o texto afirma que os erros da Igreja Católica foram
gerados por um “determinismo histórico”, procurando, uma vez mais, isentar a
Igreja Católica de seus vários problemas durante a história. O narrador prevê
um grande avanço da Igreja Católica que, até hoje, 77 anos após a publicação de
“Brasil, coração...”, não aconteceu, e que, ademais, discorda fortemente da
opinião da “Falange do Espírito de Verdade”, conforme fica claro em “Obras
Póstumas” de Allan Kardec. É constrangedor perceber a identificação do texto
com o catolicismo, em um livro que supostamente deveria estar associado à união
e unificação do Movimento Espírita Brasileiro. Vejamos:
p. 206 “...Nas suas fileiras respeitáveis, só a
desunião é o grande inimigo, porque, com referência ao Catolicismo, os padres
romanos, com exceção dos padres cristãos, se conservam onde sempre estiveram,
isto é, no banquete dos poderes temporais, incensando os príncipes do mundo e
tentando inutilizar a verdadeira obra cristã. Os espiritistas bem sabem que se
eles constituem sérios empecilhos à marcha da luz, todos os obstáculos serão,
um dia, removidos para sempre do caminho ascensional do progresso. Além disso,
temos que considerar que a
Igreja Católica se desviou da sua obra de salvação, por um determinismo
histórico que a compeliu a colaborar com a política do mundo, em cujas teias
perigosas a sua Inquisição ficou encarcerada e que, examinada a situação, não é
possível desmontar-se a sua máquina de um dia para o outro. Sabemos, porém, que
a sua fase de renovação não está muito distante. Nas suas catedrais
confortáveis e solitárias e nos seus conventos sombrios, novos inspirados da Úmbria
virão fundar os refúgios amenos da piedade cristã”. Consideramos estranha a frase:
(...)incensando os príncipes do
mundo e tentando inutilizar a verdadeira obra cristã. Padres podem ser fiéis às máximas e regras
católicas, acreditando nelas, praticando-as e pensando que estão certos e em
paz com a consciência. Pode-se considerar que alguns indivíduos, mesmo agindo
assim, aproveitam-se do poder temporal que detêm e cometem deslizes, alguns
imperdoáveis. Até aí, temos o ser humano e suas mazelas. Entretanto, dizer que
alguém torna-se padre, bajula os superiores e tenta inutilizar a obra de Jesus,
consiste em extrapolação.
No parágrafo subsequente, o texto é um tanto
prolixo, e parece sugerir um flerte de Ismael com a reforma da Igreja Católica,
que havia sido prevista no parágrafo anterior como já foi demonstrado. Quer
dizer, além de sua Instituição espírita, do Movimento Espírita Brasileiro, do
Brasil de uma forma geral, Ismael também consideraria reformar a Igreja
Católica. O Movimento Espírita Brasileiro
e Nacional era Movimento nascente, que obviamente não precisava ser reformado,
mas sim implantado. A reforma dentro do “espiritualismo” como o texto comenta
na segunda linha, está associado à Igreja Católica que era o foco principal do
capítulo anterior. Analisemos:
p.207 “Depreende-se, portanto, que a principal
questão de espiritualismo é proclamar a necessidade da renovação
interior, educando-se o pensamento do homem no Evangelho, para que o lar possa
refletir os seus sublimados preceitos. Dentro dessa ação pacífica de educação
das criaturas, aliada à prática genuína do bem, repousam as bases da obra de
Ismael, cujo objetivo não é a reforma inopinada das instituições, impondo
abalos à Natureza, que não dá saltos...”.
No parágrafo seguinte (o último
da página 207), Ismael parece perder o foco no Espiritismo nascente para falar
de reforma de Instituições, sugerindo, dentro do contexto do capítulo, que está
comentado sobre o movimento espiritualista, sobretudo o católico. Vejamos:
p. 207 “...Os que desejarem impor no seu
compreensível entusiasmo de crentes, os preceitos do Mestre às instituições estritamente humanas, talvez
ainda não tenham ponderado que a obra cristã espera, há dois milênios, a
compreensão do mundo”.
Ora, a Doutrina Espírita não nasceu
no século XIX para esclarecer e resgatar a essência dos preceitos do Mestre?!
Ele está falando de implantar o Verdadeiro Evangelho no Espiritismo ou no
Espiritualismo, (catolicismo)?
Na página 208, ele continua sua
reflexão um tanto confusa:
p.208 “Todos os que lutaram por ela de armas na
mão e quantos pretenderam utilizar-se dos processos de força para a imposição
dos seus ensinamentos, no transcurso dos séculos, tarde reconheceram a sua
ilusão...”.
Na página 208, penúltimo
parágrafo, o texto afirma:
p.208 “...os espiritistas do Brasil devem
reunir-se, a
caminho da vitória plena de Ismael em todos os corações.
Mais uma vez, o texto comenta alguma meta
relacionada à “vitória de Ismael”, esquecendo-se de Jesus e de Kardec, em
última análise: do Bem.
Vejamos o fechamento do
penúltimo parágrafo:
p.208 “Está claro que a Doutrina
não poderá imitar as disciplinas e os compromissos rijos da instituição
romana, porque, nas suas características liberais, o pensamento livre, para
o estudo e para o exame, deve realizar uma das suas melhores conquistas e
nem é possível dispensar, totalmente, a discussão no labor de aclaramento
geral. A liberdade não exclui a fraternidade, e fraternidade sincera é o
primeiro passo para a edificação comum”.
Em algum momento Kardec e a
“Falange do Espírito de Verdade” considerou imitar a igreja católica?! Em algum
momento Kardec e os mentores espirituais da Doutrina Espírita consideraram “dispensar,
totalmente, a discussão no labor de aclaramento geral”. Na Doutrina
da Fé racionada isso seria possível?!
Capítulo 30 – Pátria do
Evangelho
Chegamos ao último capítulo de “Brasil, coração
do mundo, pátria do evangelho”. E o terceiro parágrafo do respectivo capítulo
explicita o que já tínhamos detectado. Analisemos:
p.209 “Todavia, com o seu grande feito de
15 de novembro de 1889, terminamos este resumo, à guisa de História”.
Portanto, o livro prossegue como se jamais
tivesse adentrado o século XX. Percebemos, há vários capítulos, que
aparentemente a evolução da análise histórica foi interrompida. Além disso, o
texto comenta “o seu grande feito de 15 de novembro de 1889”, caindo em
contradição com comentários do final do capítulo 27, no qual lamenta a
instauração da república. Só para exemplificar tal assertiva, lembremos o
fechamento do capítulo 27:
p.193 “—Acabou-se a única República que existia na
América – o Império do Brasil”.
Na transição da página 209 para
a página 210, o texto faz uma espécie de mea
culpa em relação a eventuais limitações da obra, em uma análise que não
contribui significativamente para esclarecer os porquês dos problemas da obra.
Uma análise questionável a
respeito da interação entre brasileiros e imigrantes japoneses e alemães e suas
respectivas atuações é apresentada no oitavo parágrafo do capítulo. Analisemos:
p. 211 “Se
muitas escolas existem no Sul, onde somente se ensina o idioma alemão, em
muitos casos é porque os professores do Brasil não se decidiram a enfrentar as
surpresas da região, a fim de
zelarem pelo patrimônio intelectual dos novos operários da pátria. Se algumas
dezenas de agrônomos vieram diretamente de Tóquio para os riquíssimos vales do
Amazonas, é que os agrônomos
brasileiros não se animaram a trabalhar no sertão hostil, receosos do
sacrifício”.
No nono parágrafo, o texto muda significativamente
o foco de todo o livro ao fazer uma análise do marxismo em comparação com o
capitalismo, criticando o marxismo. Considerando que se trata da penúltima
página do livro, parece ser uma análise um pouco descontextualizada do restante
do livro.
No décimo parágrafo, o texto
desculpa-se por não discutir a fase republicana com um argumento também
questionável, principalmente se considerarmos que a república iniciou em 1889 e
o livro “Brasil, coração...” foi publicado em 1938 (portanto, quase 50 anos
depois). Ademais, o texto cai em contradição consigo mesmo, mais uma vez, pois
no capítulo 28 (“A Federação Espírita Brasileira”) comenta fatos acontecidos na
última década do século XIX e chega ao limiar do século XX. Analisemos o décimo
parágrafo do último capítulo de “Brasil, coração...” (cap. 30 – Pátria do
Evangelho):
p.212 “Não nos deteremos a falar, depois da
República, de quantos se encontram ainda no cenáculo das atividades e dos
feitos do país, porquanto semelhante ação de nossa parte constituiria uma
intervenção indébita nas iniciativas e empreendimentos dos “vivos””.
Na última página, Jesus é citado
no penúltimo parágrafo do livro; e “as falanges de Ismael” recebem o destaque
do último parágrafo. Allan Kardec não foi lembrado.
Análise Final
O texto de “Brasil, coração do
mundo, pátria do Evangelho” é marcado por diversos problemas. Alguns conceitos,
que aparecem reiteradas vezes em todo o livro, são frisados sempre de forma
exagerada e excessivamente adjetivada. Além disso, o texto cai em contradições
a todo momento e é dificilíssimo retirar informações de elevado valor
doutrinário de qualquer um de seus 30 capítulos. Em uma tentativa de resumir os
principais problemas, poderíamos mencionar:
- ausência de conteúdo doutrinário de
qualidade e em significativa quantidade. Realmente, é muito difícil extrair
informações espirituais significativas, que apresentem coerência doutrinária, e
que possam, consequentemente, contribuir na construção de nosso conhecimento
espírita;
- catolicismo exagerado. Exaltando não
somente os padres, mas símbolos, hábitos, objetos e linguagem tipicamente
católicos em todo o texto;
- jesuitismo exagerado. Exaltação de
padres jesuítas e da “Companhia de Jesus”, a qual é destacada em diversos
capítulos;
- lusitanismo exagerado. A título de
exemplo, poderíamos lembrar que o povo português é considerado, estranhamente e
sem maiores argumentações, “o povo mais trabalhador” e também “o mais humilde”
da Europa;
- brasileirismo exagerado. Esse
patriotismo exacerbado gerou, inclusive, interpretações mui questionáveis
referentes à nossa história;
- Ismaelismo exagerado. Excesso de culto
à personalidade e ao poder ismaelismo;
- O confuso papel espiritual de Ismael.
Além de diretor de uma instituição, é mentor do Movimento Espírita Brasileiro e
de todo o Brasil. De fato, dependendo do contexto, o texto enfatiza um ou outro
papel para Ismael. Para aumentar a confusão, o texto aparentemente sugere que
Ismael chegou a considerar trabalhar na reforma da Igreja Católica, que o
próprio texto prevê ocorrer de forma bem sucedida no futuro (?!);
- “Febianismo” exagerado. Em uma
discussão proselitista, buscando, em vários capítulos, não apenas que os
espíritas respeitassem a FEB, o que seria muito razoável, mas que fossem
cegamente subservientes à liderança da FEB, de uma forma até certo ponto
imposta e dogmática, como se a referida Instituição não estivesse também
sujeita a erros como qualquer outra Instituição espírita;
- Roustainguismo. Poderíamos até afirmar
que, como a menção a Roustaing ocorre em um único tópico, e que, na sua
pressuposta missão, Roustaing, nessa hipótese, teria fracassado, que esse
equívoco não foi uma postura exagerada do texto, como ocorre em todas as outras
falhas anteriores. Por outro lado, uma única citação a esse autor já é
suficiente para prejudicar significativamente a obra. De qualquer forma, a
utilização dessa citação tem sido extremamente exagerada pelos adeptos de
Roustaing e, em alguns casos, pelos próprios diretores da FEB. Portanto,
buscando respaldo na credibilidade ímpar do Apóstolo Chico Xavier,
roustainguistas recorrem repetidamente a essa citação.
- Tendência ao sincretismo religioso e à
confusão doutrinária. Associando
o trabalho espírita à Homeopatia e às práticas do sincretismo africanista, além
das evidentes marcas e apologias católicas em todo o texto, o texto demonstra
não apresentar rigor doutrinário. Assim, acaba fomentando inferências
equivocadas do ponto de vista da interpretação doutrinária e das práticas das
casas espíritas;
- Exaltação excessiva em relação ao nível
espiritual de personagens históricas, tais como Fernão Dias e Dom Pedro II,
ignorando ou relativizando excessivamente falhas graves conhecidas
historicamente e algumas delas destacadas pelo próprio texto;
- Afirmativas muito questionáveis à luz da
Doutrina Espírita, atribuída a nosso Mestre Maior Jesus de Nazaré;
- Comentários infelizes, sobretudo em um
livro espírita, concernentes a episódios muito tristes de nossa história.
Buscando muitas vezes defender incompreensivelmente alguns protagonistas,
através de elogios a atitudes claramente negativas, como os quase quatro
séculos de escravidão e a guerra do Paraguai;
- Adjetivação excessiva de uma série de
personagens do livro, sobretudo Ismael, contrastando com a inexpressiva adjetivação
relacionada a Allan Kardec nas pouquíssimas vezes que o nome do ilustre
Codificador do Espiritismo foi mencionado no texto;
- Contradição intrínseca ao próprio texto e em
relação ao Espiritismo. A obra
apresenta um número incontável de contradições intrínsecas (assertivas de um
capítulo contradizendo declarações de outro capítulo e, em muitos casos,
afirmativas contraditórias dentro do mesmo capítulo ou do mesmo parágrafo),
como, por exemplo, a análise da transição entre os períodos do Império e da
República. Ademais, graves contradições com as bases doutrinárias do
Espiritismo;
- Falta de sequência cronológica e Total
ausência de foco narrativo, fazendo com que o livro pareça a fusão de
textos completamente diferentes (a primeira parte, do capítulo primeiro até o
capítulo 21, na qual o texto segue uma linha narrativa mais condizente com a
proposta do livro (estabelecida na Introdução de Humberto de Campos e no
prefácio) em que pese suas eventuais contradições e falhas doutrinárias; e a segunda parte do capítulo 22 até o fim do
livro, sobretudo até o capítulo 29, em que o livro parece muito mais a história
da Federação Espírita Brasileira do que a história do Brasil.
Assim sendo, a ampla divulgação
desse livro, em detrimento de obras muito mais consistentes doutrinariamente,
como referência para a união e unificação do Movimento Espírita não é atitude
passível de ser aprovada como ação promotora de qualidade doutrinária e união
do movimento espírita por parte de qualquer espírita que tenha lido “Brasil,
coração...” prestando uma mínima atenção mínima.
Aliás, a proposta de intercâmbio
de ideias e informação entre as casas tem suas bases em Allan Kardec e
prescinde da contribuição do livro “Brasil, coração...”.
Por outro lado, não questionamos
a ideia básica do título da obra. Entretanto, percebemos que a ideia título da
obra, juntamente com o respaldo do nome do maior médium de todos os tempos,
Chico Xavier, tem sido usado indebitamente para apoiar propostas insertas em
“Brasil, coração...” que não resistem à menor análise.
Com relação à liderança da
Federação Espírita Brasileira, todos nós a respeitamos. E respeitamos por ter
publicado obras de grande valor doutrinário de médiuns como Chico Xavier,
Yvonne Pereira, Divaldo Franco, entre outros autores. Respeitamos também pela
promoção e/ou divulgação de palestras de alto significado doutrinário, tais
como as várias conferências de Divaldo P. Franco e J. Raul Teixeira.
Respeitamos por sua ação na caridade e na divulgação de trabalhos de elevado
conteúdo evangélico-doutrinário. Portanto, nós respeitamos a referida
instituição por sua contribuição legítima à divulgação doutrinária de
qualidade. É essa divulgação de qualidade que respalda o trabalho da Federação
Espírita Brasileira assim como respalda qualquer casa espírita bem orientada.
Nenhuma casa é a priori iluminada! Todo e qualquer Centro Espírita torna-se
respeitável se se fizer digna de respeito pelas atitudes e legados que
representem claramente seu amor e comprometimento com a Doutrina Codificada por
Allan Kardec e com o Evangelho de Jesus.
Nosso Mestre Maior Jesus de
Nazaré afirmou: “Aquele que quiser ser o maior, que seja o servo de todos”, e
também: “Dá conta de tua administração!”. Os trabalhadores e as instituições
com maior destaque como “formadores de opinião” doutrinária deveriam ser
aqueles que maior cuidado crítico e principalmente autocrítico, com especial
destaque às obras que divulgam como textos doutrinários.
Assim sendo, para qualquer
espírita minimamente esclarecido, uma divulgação maciça de uma obra que contém
sérios problemas doutrinários e de ausência de mínima coerência não está
aumentando a legitimidade da liderança natural que a Federação Espírita
Brasileira exerce no Movimento Espírita Brasileiro, mas, ao contrário, está prejudicando
tal papel de grande e gravíssima responsabilidade. A intensa divulgação do
livro “Brasil, coração...”, inclusive com cursos Ead (Ensino à distância), não
nos parece razoável, até porque há um número incontável de obras de maior
conteúdo doutrinário, publicadas pela própria Federação Espírita Brasileira,
que poderiam ser mais difundidas no Movimento Espírita.
Conclusão
Chico Xavier é o maior médium de todos os
tempos. E Francisco Cândico Xavier é tudo isso por diversas razões. E um desses
inúmeros motivos é, sem favor algum, o elevadíssimo nível de qualidade
doutrinária de suas quase 500 obras psicográficas.
A partir da análise dos trinta
capítulos de “Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho”, é possível
concluir que, extraordinariamente, “Brasil, Coração...” não mantém esse nível
de excelência.
Acreditamos que, justamente por
termos aprendido Doutrina Espírita com os livros de Allan Kardec e Chico
Xavier, entre outros, é que nossa capacidade crítica não permite que aceitemos
uma série de passagens da obra “Brasil, coração...”.
Dentro da proposta do presente
trabalho, não nos cabe especular sobre os motivos de tal discrepância em termos
de qualidade doutrinária. Tal questão jamais constituiu o objetivo dessa
análise. Nosso trabalho representa apenas uma avaliação circunscrita aos 30
capítulos de “Brasil, coração...”, os quais consideramos passíveis de crítica,
à luz da Doutrina Espírita.
Tenhamos, portanto, mais cuidado
em nossas citações elogiosas, incluindo a obra presentemente analisada, para
que nossa contribuição em relação à Doutrina Espírita e ao Movimento Espírita
seja realmente produtiva para “o conhecimento da Verdade que liberta”.
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