LEONARDO MARMO MOREIRA
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Introdução
1. “Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho”
“Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho”
é um dos livros mais divulgados do Movimento Espírita Brasileiro e,
interessantemente, também um dos mais polêmicos.
Tendo para nós Francisco Cândido Xavier como o
maior médium de todos os tempos, com especial destaque para a sua atividade
psicográfica, a qual já nos legou quase 500 livros, e considerando sua
altíssima qualidade doutrinária, sempre nos causou curiosidade as conhecidas e
já antigas polêmicas dentro do Movimento Espírita a respeito de uma das suas
mais vendidas obras que é “Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho”.
Nenhuma outra obra de Chico Xavier, dentro de sua prolífica e profícua produção
mediúnica, têm gerado polêmica doutrinária como essa.
Percebemos,
no entanto, que muitos dos debates envolvendo “Brasil, coração...” são
confusos, misturando em suas respectivas análises, a ideia básica inserta no
título do livro, concernente à missão espiritual do povo brasileiro, com o
conteúdo do livro propriamente dito. Outras análises também são restritas, única
e exclusivamente, à credibilidade de nomes, seja dos personagens insertos no
corpo do texto, seja daqueles que tiveram participação na elaboração da obra. A
nosso ver, nenhuma das abordagens supracitadas estaria de acordo com o esforço
de análise do conteúdo da mensagem preconizado tão enfaticamente na
“Codificação Espírita” por Allan Kardec.
Mesmo
dentro de significativas controvérsias, essa obra, que está completando 77 anos
da publicação de sua primeira edição, permanece pouco estudada, embora, paradoxalmente,
seja contínua, ampla e intensamente divulgada por todos os meios acessíveis.
É importante estimular não só a leitura mas o
estudo das obras espíritas, mesmo aquelas mais tradicionais. Se uma das
preocupações fundamentais dos dirigentes de “Centros Espíritas” é orientar
jovens e neófitos com segurança doutrinária, é importante que uma das obras
mais difundidas do movimento espírita seja estudada profundamente com base na
Doutrina Espírita.
A
obra “Brasil, coração...”, embora muito divulgada, ainda não possui um estudo
sistemático de todos os seus trinta capítulos, em termos simples e baseados nas
obras da Codificação. Um estudo desse tipo seria um excelente exemplo de
análise doutrinária que sempre deve ser feito com todas as obras espíritas.
Com
o objetivo, única e exclusivamente, de contribuir para o estudo de obra tão
importante dentro do contexto do movimento espírita, é que submetemos nossa
singela contribuição aos confrades que eventualmente demonstrem interesse em
conhecer nossa análise. Certos de que esse pequeno esforço consiste em
avaliação que deve ser prática comum em nossas leituras doutrinárias, estamos à
disposição dos amigos leitores para a troca de ideias, sem a qual jamais
construiremos, efetivamente, a “fé inabalável”, conforme conceituação da
“Codificação Kardequiana”, em condições de “enfrentar a razão, face a face, em
todas as épocas da humanidade”.
O
próprio Santo Agostinho tem oportunidade de afirmar em “O Livro dos Médiuns”
(capítulo XXI – “Dissertações Espíritas” (Item XVI)): “Aprendei a distinguir o
joio do trigo. Semeai apenas o trigo e evitai espalhar o joio, porque este
impedirá que o trigo germine e sereis responsáveis por todo o mal que decorrer
disso. Assim, sereis responsáveis pelas doutrinas errôneas que divulgardes”
[Kardec, 1973].
2. O Movimento Espírita nos dias atuais e no
futuro
O Movimento Espírita vive atualmente um momento
decisivo em seu desenvolvimento histórico, tanto em nível nacional como em uma
esfera mundial. Muito do preconceito contra o Espiritismo e os espíritas foi
substancialmente diminuído. Testemunhamos representativa atenuação dos ataques
que o Movimento Espírita e os espíritas costumam sofrer desde o tempo de Allan
Kardec, graças a uma compreensão mínima, por parte da sociedade, em relação aos
ideais doutrinários e às atividades do Centro Espírita e/ou do Movimento
Espírita. Neste contexto, pode-se destacar a significativa obra de assistência
social desenvolvida pelos centros espíritas e o exemplo de cidadania digna que
muitos espíritas forneceram, com destaque para Chico Xavier, e continuam
fornecendo através de existências de alta significação do ponto de vista
espiritual.
O
respeito social conquistado pelo movimento espírita e pelos espíritas em geral
tem sido considerado um dos fatores propiciadores do aumento de número de
adeptos da Doutrina Espírita no Brasil e no Mundo.
Obviamente,
esse aumento de adeptos é, em princípio, um fato muito positivo, pois
significa, entre outras coisas, que maior número de pessoas tem tido acesso à
mensagem libertadora proporcionada pelo Espiritismo, “o consolador prometido
por Jesus”.
No
entanto, tal crescimento quantitativo do Movimento Espírita, tanto do número de
adeptos como do número de instituições espíritas, também representa um contexto
profundamente desafiador para todos àqueles que possuem maior nível de
compromisso com o ideal espírita, incluindo diferentes tipos de trabalhadores,
tais como dirigentes de centros espíritas, estudiosos, redatores, palestrantes,
médiuns etc.
O
aumento numérico de adeptos e de centros espíritas, associados a um intenso
aumento da publicação de obras tidas como espíritas, que podem apresentar
conteúdo doutrinário bastante questionável, algumas das quais muitas vezes com
o status de “best-sellers”, têm preocupado muitos espíritas conscientes de suas
responsabilidades com relação ao trabalho doutrinário, com a responsabilidade
que o Espírito Santo Agostinho menciona no comentário transcrito no tópico
anterior. Portanto, aparentemente, o aumento do número de adeptos está
significativamente associado a neófitos com conhecimento ainda superficial a
respeito do Espiritismo. Assim sendo, o Centro Espírita, como principal célula
do “Movimento Espírita”, tem uma responsabilidade capital no processo de
educação espírita de qualidade assim como cada espírita militante tem que
procurar fornecer sua contribuição para que a “Luz da Verdade”, que por
acréscimo de misericórdia possa tê-lo beneficiado, também possa chegar a outros
irmãos, sendo, se possível, igualmente conservada para as futuras gerações das
décadas que virão.
Não
podemos olvidar a necessidade de estimular a análise crítica do conteúdo de
toda mensagem espírita, conforme aprendemos na Codificação Kardequiana, seja
ela veiculada oralmente, em livros convencionais, ou através das mídias
eletrônicas, tão em voga atualmente e que serão, sem dúvida, meios de estudos
doutrinários cada vez mais intensivos no futuro.
O
fato é que o Movimento Espírita deve ser sempre consolidado sobre as bases de
significativo conhecimento doutrinário ao invés da Doutrina Espírita ser
“adaptada” pelos “modismos” do Movimento. O problema não é o direito das
pessoas em crer nos conceitos espiritualistas com os quais tem afinidade. O
problema é fazer passá-los como espíritas, quando não são. Se esse
direcionamento verdadeiramente doutrinário não acontecer, a “Casa Espírita” e
toda atividade espírita começará a ser apresentada “à moda da Casa”, como
alguns confrades costumam comentar (e como, em alguns casos, já vem
acontecendo) e a descaracterização doutrinária pode, lenta, gradual, porém
sistematicamente, consolidar-se de tal forma que os confrades do futuro terão
muitas dificuldades para recuperar a chamada “simplicidade evangélica” e a
coerência doutrinária, à luz do pensamento kardequiano, que devem ser sempre as
diretrizes de segurança para o desenvolvimento de atividades espíritas.
Ao
lembrar de Léon Denis, logo no início de “No Invisível” (“O Espiritismo será
aquilo que os homens fizerem dele”) [Denis, 2011], percebemos a
responsabilidade que nos cabe, a nós que estamos vinculados, de coração, ao
movimento espírita.
Tal
conscientização motivou o estudo e a confecção do presente trabalho de análise
da obra “Brasil, ...”. Esta análise visa avaliar o conteúdo da mensagem,
conforme preconizado por Allan Kardec, e com isso melhorar nossa compreensão
doutrinária, objetivando o aumento do discernimento doutrinário do movimento
espírita para o presente e para as gerações do futuro.
Busquemos,
portanto, a fé raciocinada, com sinceridade, para que a nossa percepção
doutrinária seja a mais fiel possível e para que o tríplice aspecto do
Espiritismo tenha equilíbrio e apoie-se mutuamente, tanto em nossas mentes como
em nossos corações, o mais próximo possível do ideal inspirado pela Falange do
Espírito de Verdade e tão lucidamente captado pelo “Codificador” Allan Kardec.
O volume da respectiva obra de
Humberto de Campos pela mediunidade de Chico Xavier que foi utilizada para essa
avaliação é a 33 ed. FEB 9/2010 [Campos, 2010]*.
*Campos, H. [psicografado por Francisco C.
Xavier]. Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. 33 ed. Federação
Espírita Brasileira. 2010.
Capítulo 1 - O Coração do Mundo
Pág. 16 “—Helil
– disse a voz suave e meiga do Mestre a um dos seus mensageiros, encarregado
dos problemas sociológicos da Terra – meu coração se enche de profunda
amargura, vendo a incompreensão dos homens no que se refere às lições do meu
Evangelho. Por toda parte é a luta fratricida, como polvo de infinitos
tentáculos, a destruir todas as esperanças...”
É
estranho que Jesus pareça amargurado, desanimado. Os Mentores espirituais de
André Luiz, por exemplo, são sempre cuidadosos ao tratar dos mais complexos
problemas com pensamento positivo, buscando não criar impressões negativas nos
interlocutores e nos eventuais leitores. Já é tempo dos homens se compenetrarem
de que não há nenhum ser humano em condições de radiografar a alma do Divino
Amigo para afirmar como Ele se sente. Entretanto,
alguns podem comparar a expressão de amargura de Jesus com as palavras do
Espírito de Verdade no item 5 do capítulo 6 (“O Cristo Consolador”) de “O
Evangelho Segundo o Espiritismo” [Kardec, 1973]: “Sinto-me por demais tomado de
compaixão pelas vossas misérias, pela vossa fraqueza imensa, para deixar de
estender mão socorredora aos infelizes transviados que, vendo o céu, caem nos
abismos do erro.”
Pág. 17. “Todavia
– replicou o emissário solícito, como se desejasse desfazer a impressão
dolorosa amarga do Mestre....”
Helil
está tentando consolar Jesus? O texto dá a entender que Helil está tentando
despertar uma visão mais positiva para o Mestre. Pode-se alegar, que Jesus está
apenas “dando a oportunidade de Helil elaborar a discussão, o que, ele mesmo
Jesus poderia fazer. É uma hipótese
razoável. De qualquer maneira, vamos prosseguir para colher mais dados para
nossa análise.
Pág. 17 “...esses
movimentos, Senhor, intensificaram as relações dos povos da Terra, aproximando
o Oriente e o Ocidente, para aprenderem a lição da solidariedade nessas
experiências penosas; novas utilidades da vida foram descobertas; o comércio
progrediu além de todas as fronteiras, reunindo as pátrias do orbe...”
Helil estava tentando explicar e justificar as
Cruzadas para
Jesus.
Pág. 17 “...Sobretudo,
devemos considerar que os príncipes cristãos, empreendendo as iniciativas
daquela natureza, guardavam a nobre intenção de velar pela paisagem
deliciosa dos lugares santos”.
Em primeiro lugar,
“Lugares santos” constitui expressão atípica ao Espiritismo. Entretanto, é
difícil crer que os responsáveis pelas Cruzadas “...guardavam a nobre intenção...”. Como pode ser nobre uma
intenção de matar um número incontável de pessoas por vários séculos para ter o
controle de um local físico, ou porque queriam “...velar pela paisagem deliciosa dos lugares santos”?
Pág. 19 “...Cheio
de esperanças, emociona-se o coração do Mestre, contemplando a beleza do
sublimado espetáculo.
- Helil – pergunta Ele -, onde
fica, nestas terras novas, o recanto planetário do qual se enxerga, no
infinito, o símbolo da redenção humana?”
Jesus,
segundo o texto, teria enfatizado que “o símbolo da redenção humana” é a cruz.
Trata-se de comentário simbólico vazio e sem sentido para aquele que dois mil
anos atrás combateu uma série de simbolismos e tradicionalismos religiosos. Já
naquela época, Jesus achava que tínhamos condição de saber que “o Reino de Deus
está dentro de vós”; “nem todos aqueles que dizem: “Senhor, senhor”, serão
salvos!”. Além disso, Ele parece desconhecer a posição geográfica do Brasil . É
claro que podemos considerar um pergunta retórica.
Na
página 20, o texto se refere a Portugal de forma muito questionável:
Pág.
20 “...A nação mais humilde da
Europa” (grifos nossos).
Em que sentido Portugal seria a nação mais
humilde da Europa? Economicamente? Militarmente? Moralmente? É bem questionável
tal afirmativa. Mais à frente, o texto acabará propondo sentenças
contraditórias em relação a essa suposta liderança em termos de humildade.
Pág. 21 “Foi
por isso que o Brasil, onde confraternizam hoje todos os povos da Terra, e onde será modelada a obra imortal do
Evangelho do Cristo, muito antes do Tratado de Tordesilhas, que fincou as
balizas das possessões espanholas, trazia já, em seus contornos, a forma
geográfica do coração do mundo”.
Trata-se
de um comentário confuso. Ora, se analisarmos a costa oriental da América do
Sul, que hoje constitui o litoral brasileiro, nós não teremos a forma
aproximada de um coração. Isso só pode ser admitido com a expansão da América
portuguesa para muito além dos limites portugueses estabelecidos pelo Tratado
das Tordesilhas. Previamente, somente analisando a geografia da região, fica
difícil visualizar “...em seus contornos,
a forma geográfica do coração do mundo”, a não ser que o texto se refira a
toda a América do Sul, mas o texto frisa, especificamente, “o Brasil”.
Capítulo 2 – A Pátria do Evangelho
Vejamos um diálogo entre Jesus e Helil. Diz
Helil a Jesus:
Pág. 27 “—Mestre
– diz ele --, graças ao vosso coração misericordioso, a terra do Evangelho
florescerá agora para o mundo inteiro...”.
Dizer que o Brasil é a terra do
Evangelho faz parecer que o Espírito Helil está menosprezando o resto do mundo.
Mesmo que se possa interpretar isso como sendo uma referência a uma “missão”
especial do nosso país, Helil poderia ter dito “... a terra onde esperamos seu
Evangelho florescerá e servirá de exemplo para o mundo inteiro...”. Vejamos a resposta de Jesus:
Pág. 27-28 “
– Helil, afasta essas preocupações e receios inúteis. A região do Cruzeiro,
onde se realizará a epopeia do meu Evangelho, estará, antes de tudo, ligada
eternamente ao meu coração”.
Em
primeiro lugar, “a epopeia do Evangelho de Jesus” deveria ser realizada em toda
a Terra. Jesus diz no Evangelho: “Ide e pregai a todas as Criaturas...” e
também “...tenho ovelhas que não são desse redil...”. Em segundo lugar, todos
os rincões do planetas são carinhosamente cuidados por nosso Mestre Jesus.
Alguns
leitores e/ou confrades poderiam alegar que Humberto de Campos escreve de
acordo com “as tradições do mundo espiritual”, conforme o próprio autor
espiritual assevera na Introdução do livro “Brasil, coração...”. Essa alegação,
por si só, já faz com que devamos ter um cuidado ainda maior na leitura da
respectiva obra e nas inevitáveis inferências. Entretanto, somente esse
argumento não explica, e muito menos justifica, os problemas da obra. E isso
fica claro se compararmos o livro “Brasil, coração...” com “Crônicas de
Além-Túmulo” [Campos, 1998] e “Boa Nova” [Campos, 2004], nos quais Humberto
também utiliza de algumas informações obtidas das chamadas “tradições do mundo
espiritual”, mas sem cometer os vários lapsos presentes em “Brasil,
coração...”.
Capítulo 3 -- Os Degredados
Pág. 33 “...Na
sua branca substância, uma tinta celeste inscrevera o lema imortal: “Deus,
Cristo e Caridade”.
O autor dessa
inscrição seria Ismael que, de forma sútil , faz propaganda da Federação
Espírita Brasileira, afinal, “Deus,
Cristo e Caridade”, é o lema dessa instituição. Sentimos falta dos Espíritos terem destacado,
também, o lema do Espiritismo “Fora da Caridade Não Há Salvação”, porque esse
lema é a mais pura representação do Evangelho de Jesus, que deixa muito claro
que não importa a crença de uma pessoa, pois se ela pratica a caridade, ela
está agindo de modo correto. Alguém pode não acreditar nem em Deus, nem no
Cristo, mas se praticar a Caridade, vai estar de acordo com a Lei de Justiça,
Amor e Caridade. Portanto, o lema do Espiritismo, em nossa opinião, deveria ter
sido destacado aqui, como o lema de uma pátria que é dita ser “a pátria do
Evangelho”.
Capítulo 4 - Os Missionários
Pág. 40 “...Temos
de buscar no seio da Igreja as roupagens exteriores de nossa ação regeneradora.
Infelizmente, a dolorosa situação do mundo europeu, em virtude do fanatismo
religioso, tão cedo não será modificada. Somente as grandes dores realizarão a
fraternidade no seio da instituição que deverá representar o pensamento do
Senhor na face da Terra, a Igreja que, desviada dos seus grandes princípios
pela mais terrível de todas as fatalidades históricas, foi obrigada a participar
do organismo mundano e perecível dos Estados...”
Ismael afirma que a Igreja “deverá representar o pensamento
do Senhor na face da Terra”. Se isso fosse admitido no movimento espírita como
verdadeiro, deveríamos desenvolver estratégias para fomentarmos uma profunda
aproximação com a igreja católica e o Movimento Espírita se transformaria em um
“ordem da igreja católica”.
O texto ainda afirma
que a Igreja “foi obrigada a participar do organismo mundano e perecível dos
Estados...” Em nossa opinião, a Igreja não “foi obrigada” a participar do
organismo mundano, como afirma o texto. O que a História mostra é que os
líderes religiosos cederam à tentação de compactuar com o poder humano, o que
trouxe prejuízos graves para a instituição da mensagem cristã, simples e
verdadeira, junto aos povos. Estes comentários não estão de acordo com o que os
Espíritos da falange do Espírito de Verdade comentam sobre a Igreja Católica
Apostólica Romana no livro “Obras Póstumas” [Kardec, 1998]. E não se trata de opinião pessoal, conforme podemos inferir
dos seguintes trechos de duas mensagens de Obras Póstumas ("Futuro do Espiritismo" e "A Igreja")
[Kardec, 1998]. Na primeira, o autor espiritual assevera "...cabe-nos
retificar os erros da história e apurar a religião do Cristo, transformada, nas
mãos dos padres, em comércio e em vil tráfico. Instituirá (o Espiritismo) a
verdadeira religião, a religião natural, a que parte do coração e vai
diretamente a Deus, sem dependência das obras da sotaina ou dos degraus do
altar". Na segunda mensagem citada é comentado que "Chegou a hora em
que a Igreja deve prestar contas do depósito que lhe foi confiado; do modo como
praticou os ensinos do Cristo, do uso que fez da sua autoridade, da
incredulidade, enfim, a que arrastou os homens". E mais à frente o autor é
ainda mais incisivo quanto ao futuro da Igreja estabelecendo que "Deus a
julgou e reconheceu-a imprópria, de hoje em diante, para a missão do progresso,
que incumbe a toda autoridade espiritual". Ainda sobre a Igreja Católica e
o futuro da humanidade o Espírito d´E... afirma que a Igreja "acha-se
nesta alternativa: ou se transforma e suicida-se, ou fica estacionária e
sucumbe esmagada pelo carro do progresso". Como se não bastasse, o autor
ainda é mais peremptório asseverando que "a doutrina espírita é chamada a
ferir de morte o papado..." e conclui seu artigo com a seguinte frase
"A Igreja atira-se, por si mesma, ao precipício" [Kardec, 1998].
Pág. 40 “...Um
sopro de reformas se anuncia, impetuoso, no âmago das organizações religiosas
da Europa e, em breves dias, Roma conhecerá momentos muito amargos...”
Pág. 40 “...
Leão X, que detém neste instante uma coroa injustificável, porquanto o Reino de
Jesus ainda não é desse mundo...”
Pág. 40. “...o
seu campo nos oferece para encetar essa obra de edificação da pátria do
Cordeiro de Deus”.
A
expressão “Cordeiro de Deus”, a qual, na missa católica, se completa com
“...que tira os pecados do mundo...”, não consiste em uma expressão espírita e
não tem o menor significado dentro da doutrina espírita, já que não acreditamos
na “Salvação”, como é o caso do catolicismo e de outras religiões cristãs.
Como é possível perceber,
analisando até o presente capítulo, já fica difícil aceitar o texto como obra
propriamente espírita. Estaria mais para um livro meramente espiritualista ou
ficcional. Entretanto, a situação fica mais grave se considerarmos que tal
livro é exaltado como fundamental para o Espiritismo brasileiro e mundial. E é justamente por amar Chico Xavier e
Humberto de Campos, respeitando e amando suas verdadeiras e extraordinárias
contribuições, como elevadíssimos desenvolvimentos das obras básicas de Allan
Kardec, que temos dificuldade em aceitar este livro como obra relevante
doutrinariamente.
p.42 “...Não
constitui objeto do nosso trabalho o exame dos erros profundos da condenável
instituição (referindo-se à Inquisição. )...”.
No
mesmo parágrafo desse comentário (na mesma página 42), o texto confirma isso,
afirmando:
p.42.
“...O que nos importa é a exaltação daqueles missionários de Deus, que
afrontavam a noite das selvas para aclarar as consciências com a lição suave do
Mártir do Calvário. Esses homens abnegados eram, de fato, “o sal da nova
terra”.
Trata-se de uma contradição. O autor chama de condenável a instituição
que elogia ao longo do livro. O capítulo termina com duas expressões
tipicamente católicas:
p.43 “...e,
com sua divina pobreza se fizeram os iniciadores da grande missão apostólica (referência
à Igreja Católica Apostólica Romana) do
Brasil...”
p.43. “...transformando a terra do Cruzeiro
numa dourada e eterna Porciúncula.”
Existe uma cansativa exaltação da “divina pobreza” e da humildade com a
inauguração da missão apostólica.
Capítulo 5 - Os Escravos
No
presente capítulo, Jesus, em diálogo com Ismael parece desconhecer que os
africanos eram escravizados pelos europeus ou parece desejar que os
“portugueses escravizassem com amor”. Vejamos a passagem:
p.46
(primeira página do capítulo): “...Ismael,
porém, não trazia no coração o sinal da alegria. Seus traços fisionômicos
deixavam mesmo transparecer angelical amargura”
Nota-se, mais uma vez a utilização de
expressões tipicamente católicas. E, principalmente, existe “angelical
amargura” ?! Vejamos o que Jesus comenta para explicar a escravidão dos negros
no Brasil que durou praticamente 4 séculos inteiros, e cujas consequências, de
certa forma, perduram até hoje:
“...Havia eu determinado que
a terra do Cruzeiro se povoasse de raças humildes do planeta, buscando-se a
colaboração dos povos sofredores das regiões africanas; todavia, para que essa
cooperação fosse efetivada sem o atrito das armas aproximei Portugal daquelas
raças sofredoras, sem violências de qualquer natureza. A colaboração africana
deveria, pois, verificar-se sem abalos perniciosos, no capítulo das minhas
amorosas determinações...”
Em primeiro lugar, seria mais coerente supor
que Jesus dissesse “daqueles irmãos sofredores” e não “daquelas raças
sofredoras”. Da maneira como o texto é apresentado, Jesus está pensando em
termos de “raças”. Ora, o Espírito é imortal e pode habitar todo tipo de corpo,
todo tipo de raça, em qualquer nacionalidade etc. Em segundo lugar, a
“colaboração” é um eufemismo pouco adequado para escravidão. Jesus não poderia
ignorar que havia escravidão no mundo e que os negros ficariam 4 séculos como
escravos no Brasil. Em terceiro lugar, “...aproximei Portugal daquelas
raças sofredoras, sem violências de qualquer natureza...” causa extrema
estranheza. É possível que Jesus, como governador da Terra, tenha dirigido o
processo de aproximação entre Portugal e os povos africanos, entretanto, não se
pode acreditar que o Mestre esperasse que o processo de escravização ocorresse
sem violência, ou mesmo crer que Portugal pudesse convencer estes povos a
migrarem para o Brasil voluntariamente. Do século XVI ao século XIX, a par dos quatro séculos de escravidão no
Brasil, portugueses, espanhóis, franceses, holandeses e ingleses desfalcaram a
África de uma parte muito grande da sua população (cerca de 15 milhões de
indivíduos).
Estudos e pesquisas sobre a escravidão no Brasil
confirmam que aqui ela apenas se expandia, eis que há muito tempo já era ativa
no mundo todo, principalmente na Europa. Portugal já a praticava na África,
buscando escravos abaixo do oeste africano, em águas atlânticas. Vejamos a seguinte passagem que é um comentário
atribuído a nosso Mestre Jesus de Nazaré:
p.48 “...Na
velha Península já não existe o povo mais pobre e mais laborioso da Europa...”.
Na
época das navegações e nos períodos em que começava a relação de Portugal com
os povos africanos, Portugal não era “o
povo mais pobre...da Europa”. Se Portugal fosse o povo mais pobre da
Europa, não teria a mínima condição de promover o financiamento de uma série de
expedições, cujos custos eram altíssimos. Aliás, se isso fosse verdade, por que
os espanhóis assinaram o “Tratado de Tordesilhas”, dividindo o mundo todo em
duas partes com o “o povo mais pobre...da
Europa” ?! Os espanhóis poderiam ficar com tudo ou anexarem Portugal, que,
sendo “o povo mais pobre...da Europa” não
poderia impor quaisquer tipos de resistência econômica e, por consequência,
militar, até por ser um país pequeno em extensão territorial. Os investimentos
econômico, político, tecnológico, militar e estratégico eram altíssimos e foi
justamente arcando com tamanho investimento que Portugal cacifou-se como uma
“Potência Naval” da época. Para ilustrar vou frisar três expedições: A de Vasco
da Gama (“pano de fundo” do famoso “Os Lusíadas” de Camões) para encontrar o
caminho para as Índias; a de Pedro Álvares Cabral, que não se restringiu ao
descobrimento do Brasil, pois uma parte das embarcações, após ficar um tempo no
Brasil, seguiu viagem para a África; e a que previamente havia descoberto o
chamado “Cabo das Tormentas” (hoje “Cabo da boa Esperança”). Será que “o povo mais pobre...da Europa” teria
condições de financiar tudo isso?
Na Idade Média, considerando o período da escravidão
no Brasil, Portugal tinha reis, Inglaterra, Espanha e França, também. Eles
misturavam as nobrezas em arranjos interesseiros, Portugal/Inglaterra e
França/Espanha, daí que a troca de favores ajudou Portugal e seu pendor para as
viagens marítimas, tendo como aliada a Inglaterra, então considerada a “rainha
dos mares”.
Por outro lado, será
que o povo português poderia ser considerado realmente “...o povo...mais laborioso da Europa...”? Sem desmerecer o povo
português, mas tal afirmativa poderia ser facilmente questionada por
historiadores da Europa e de outros povos europeus.
Capítulo 6 – A Civilização Brasileira
p.53
“... Villegaignon, localizado na
Guanabara, edifica a sua obra; mas os padres calvinistas, que lhe acompanharam
a expedição, inutilizam-lhe muitas vezes o trabalho construtivo, com as suas discussões
estéreis...”.
O livro apresenta um forte viés católico, escrevendo para
espíritas, mas exaltando o Catolicismo e os católicos. Evitando críticas ao
Catolicismo, “dourando a pílula” até da Inquisição. Nesse contexto, as críticas
aos Protestantes soam despropositadas e exageradas. O livro também contempla
algumas passagens, que poderiam ser classificadas como pueris ou inúteis, com linguagem e contexto
que não aparecem em boas obras espíritas. Vejamos um dos parágrafos da página
54:
p.54 “...Nas esferas superiores do Infinito,
Ismael e suas abnegadas falanges choram sobre tão lamentáveis acontecimentos, quais o suplício
imposto a João de Bolés pelos elementos de mais confiança dos maiorais da
espiritualidade”.
Em
primeiro lugar, se Emmanuel ou os mentores de André Luiz encontram um Espírito
chorando demais, mandariam-no prontamente ao trabalho. Em segundo lugar, “...Nas esferas superiores do Infinito...” é
uma expressão vazia. Somos informados
que os Espíritos Superiores trabalham muito e que não ficam nas “esferas
superiores”, ainda mais do “infinito”.
De preferência, vão para o umbral socorrer irmãos. Além disso, “dos maiorais da espiritualidade”, é uma
expressão um tanto infeliz. Trata-se de uma linguagem grosseira em relação aos
nossos Mentores Espirituais, soando um pouco desrespeitosa com relação aos
Protetores espirituais que se esforçam para o nosso bem. Como é que “os maiorais da
espiritualidade” não conseguiram impedir o suplício do João de Bolés, imposto
por seus elementos de mais confiança? Ademais, há controvérsias de
historiadores sobre a identidade do último francês enforcado, se era ou não
João de Bolés.
Na
página 56, há uma discussão de certo modo grosseira e questionável sobre os
papéis dos estados São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. O parágrafo se
inicia com “Ninguém pode negar...”.
Algo que não pode ser negado soa como postulação dogmática. Vejamos o texto:
p.56 “Ninguém pode negar a hegemonia da
intelectualidade carioca e fluminense desde os tempos em que a cidade de São Sebastião...”.
Obviamente,
o Rio de Janeiro, sobretudo quando se tornou a capital federal, aglutinou
grande massa crítica em termos de intelectualidade, mas quando o texto afirma
“desde os tempos” acaba sugerindo que isso continuou ininterruptamente. Além
disso, em que pese que São Paulo era bem menor do que o Rio de Janeiro, temos que considerar que Salvador, São Vicente e Recife
também eram aglomerações muito importantes na época. Essa suposta
“hegemonia” é, no mínimo, questionável, e, o que é pior, “Ninguém pode negar...”, constitui construção muito estranha em um livro
supostamente espírita.
O
parágrafo continua com uma análise sui
generis....
p.56. “...São
Paulo e Minas de hoje foram as regiões escolhidas como as duas fontes poderosas
que guardariam o potencial de energias orgânicas da terra, formando os primeiros
índices da etnologia brasileira.
Trata-se de um texto
prolixo e sem conteúdo. O autor sugere que São Paulo e Minas servem, no Brasil,
basicamente, para gerar comida e produtos agrícolas.
p.56 “...
Ambos (se referindo a São Paulo e Minas Gerais – nota minha) serão ainda, por muito tempo, as conchas da
balança política e econômica da nacionalidade e os dínamos mais poderosos da
sua produção. Obedecendo aos elevados propósitos do mundo oculto, ambos ficaram
irmanados junto do cérebro do país, por indefectíveis disposições do
determinismo geográfico, que os reúne para sempre”.
A
primeira parte da afirmativa não parece de todo errada, pois por muito tempo e
mesmo atualmente, Minas Gerais e São Paulo exercem grande influência política e
econômica no país. Quanto à
geração de comida o agronegócio atual (2015) não mostra Minas Gerais ou
São Paulo em posições absolutamente destacadas. Dentre outros, consideremos os
Estados de Mato Grosso, Tocantins, Goiás, Paraná, Rio Grande do Sul. O texto afirma ainda que São Paulo e Minas
Gerais foram privilegiados por estarem
geograficamente na vizinhança do “cérebro do país” que é o Rio de
Janeiro. E o papel de São Paulo e Minas é só “produção” em relação ao centro
“hegemônico da intelectualidade” brasileira, que é o Rio de Janeiro. Hoje em
dia, o Rio de Janeiro não constitui de modo isolado ou destacado um centro de
produção intelectual e científica do país, cabendo este papel mais ao estado de
São Paulo, e lentamente outros estados também se destacam. Ocorre um erro de
previsão do autor, o que denota que este não seja um Espírito de grande
elevação.
Cabe
uma anotação: O Rio “pensa” (questionamos respeitosamente essa “hegemonia
intelectual” do Rio de Janeiro); São Paulo e Minas Gerais “geram comida e
dinheiro” , mas os demais estados brasileiros parecem desprestigiados.
O
texto continua:
p.57 “...e,
ainda agora, em 1932...vários outros gênios espirituais da terra brasileira se
reuniam no Colégio de Piratininga, implorando a Jesus derramasse o doce bálsamo
da sua humildade sobre o orgulho ferido dos valorosos piratininganos, e Ismael
estende o seu lábaro de perdão e de concórdia sobre os movimentos
fratricidas...!
Portanto, os
paulistas, a priori, estavam totalmente errados na chamada “Revolução
Constitucionalista” de 1932. Nessa análise histórica, os paulistas aparecem
como os únicos responsáveis pelos problemas do Brasil e do respectivo período
porque eram “orgulhosos”. O Rio de Janeiro, mesmo sendo a sede de um governo
instalado por golpe de estado e que durou cerca de 15 anos ininterruptos ,
aparentemente, não tinha nenhuma responsabilidade, assim como os demais estados
. O texto não menciona instabilidade política ou a instalação de um governo ditatorial.
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